sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Açúcar, um Veneno que nos Corre nas Veias


"Gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilónia não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança do inferno."
Estas palavras do Padre António Vieira, no sermão do Rosário, em 1633, citadas por Stuart Schwartz na História da Expansão Portuguesa, edição Círculo de Leitores, julgo traduzirem bem a imagem da realidade da indústria do açúcar aos olhos de quem não estava habituado ainda, no século XVI, aos ritmos de trabalho pontuado pela exploração intensiva e industrial, mesmo tendo em linha de conta que a indústria açucareira só começou realmente a florescer e incrementar-se a partir de meados desse século. Mas não era apenas a realidade do processo industrial propriamente dito, ou da actividade de "platation", que causava espanto e admiração no espírito do Jesuíta. A realidade que ele observava com os seus olhos e aferia com as suas palavras era mais ampla e continha, parece-me, um sentimento de alguma repulsa, de cariz porventura religioso, por aquilo que observava e que era certamente o que mais saltava à vista: o trabalho forçado de um exército de mão de obra negra e escrava que tinha sido a solução encontrada para a substituição dos ameríndios menos adaptados e menos capazes, quer do ponto de vista técnico, quer do ponto de vista cultural, aos trabalhos de índole agrícola. Isto, claro, para além da escassez de mão de obra ameríndia que se foi acentuando em razão de vários factores, nomeadamente, e talvez dos mais importantes, o das doenças viajadas da europa e que foram dizimando os indígenas aos milhares no Brasil.
À realidade, que Vieira conheceria, juntava-se ainda o facto da complacência demonstrada em relação à rentabilidade laboral exigida pelos senhores ser muito menor para com os negros do que para com os ameríndios. A.R.Disney, dá conta disso na sua "História de Portugal e do Império Português", da "Guerra e Paz, Editores, numa pequena amostra do tratamento reservado aos escravos negros logo que chegavam a território brasileiro, mesmo que isso pudesse variar de senhor para senhor: “em algumas plantações brasileiras os novos escravos eram imediatamente chicoteados após a chegada, para enfatizar o seu estatuto servil”.
Pese embora saibamos que nem sempre os Jesuítas foram coerentes no discurso relativo à escravatura, não podemos deixar de notar, apesar de tudo, a visão de Vieira, a exibir ódio e repulsa face ao que via. Mas lembraremos igualmente a exclamação, por demais conhecida, do mesmo Padre António Vieira, quando fazia a defesa da expulsão dos holandeses da região Pernambucana: "Sem Angola não há negros e sem negros não há Pernambuco". Ou seja, o contexto da escravatura não deixava ninguém sem mácula.
Parece implícito que o jesuíta conhecia bem a realidade em que se movia o tráfico e reconhecia que ele era importante no recrutamento de mão de obra para a indústria do açúcar, logo para a Europa e, especialmente, para o bolso das coroas europeias sempre carecidas de novas receitas.


Jacinto Lourenço - Janeiro 2019