sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Servilismo que nos Está no Sangue




O problema é antigo, e parece que nos está no sangue. Dizem-nos que o herdámos do tempo do "botas" , que nos obrigou ao servilismo. Não acredito. A coisa vem mais de trás, do princípio da nossa história enquanto nação, com Egas Moniz a confundir honra com servilismo ( numa "interpretação" muito minha, e livre, da História...) quando foi pedir perdão e oferecer a sua vida e da sua família em resgate  a Afonso VII por D. Afonso Henriques se ter recusado a prestar vassalagem ao primo, conforme lhe prometera Egas Moniz, se este levantasse o cerco a Guimarães.  Sempre tivemos esta tendência para a servidão, para a obediência cega e parva, sem questionamentos. Somos assim; desenvolvemos, de facto, como nenhum outro povo da Ibéria,  a arte de "engolir sapos", mesmo se eles são de difícil digestão, e mostrar um sorriso,  por mais amarelo que seja.

Se vamos ao senhor doutor para tratar das maleitas que nos afligem, lá vem a promessa de, pela Páscoa, lhe fazermos chegar um borreguinho ou um cabritinho desmamado, tenrinho, ainda a saber a leite, sim,  claro, porque  o médico nos vai aliviar das dores que carregamos. 

Os mais pobres podem sempre ofertar um queijinho ou um chouriço lá da terrinha. O físico, impante na sua cátedra inquestionável e impenetrável, a olhar-nos por cima dos óculos, diz que sim, que gosta e, na troca de uns placebos,  lá mais para a frente poderá seguir também para o consultório  um perú pelo Natal.                                                                                                            
Ainda hoje, mesmo acedendo a um Serviço Nacional de Saúde pago com os nossos impostos, não conseguimos deixar de olhar para o médico como alguém a venerar servilmente, em lugar de o vermos como profissional que é, pago para tratar-nos da saúde. A esta imagem, talvez mais diluída nos meios urbanos, juntam-se outras que têm a ver com o sacerdote católico, o pastor protestante,  o advogado, com o cabo da guarda, com o presidente da Câmara, etc, a quem dedicamos ridículos e servis  encómios numa atitude borrega, sem paralelo conhecido a não ser o da  nossa triste vocação para desistirmos com facilidade de exibir a dignidade que reside no simples facto de sermos seres humanos e cidadãos na  plenitude da igualdade de direitos e deveres que independe da posição social que ocupamos . Somos, quiçá, dos únicos países do mundo chamado desenvolvido a achar que títulos académicos fazem parte, ou devem  usar-se em lugar dos nomes de registo ou baptismo. Um país de doutores e engenheiros em que, mesmo aqueles que o não são exigem tratamento deferente como se o fossem. Doutor para aqui, doutor para ali, senhor engenheiro para isto senhor engenheiro para aquilo. É cultural, dizem-nos. Sim, até pode ser, mas não passa de uma cultura de penacho que assenta num servilismo a raiar a falta de coluna vertebral que se liga com a facilidade com que a vergamos por tudo e nada.

Clara Ferreira Alves constatava, numa das suas habituais e recentes crónicas no Expresso, que "outros países estão a conseguir atravessar a crise da dívida com a dignidade intacta" e só "Portugal resolveu transformar-se num país habitado por bonecos das Caldas". Dizia ainda  que "o nosso desejo de agradar, de servir, perde-nos. Faz-nos perder o respeito por nós próprios". Também, num outro registo, a mesma Clara Ferreira Alves, em reportagem sobre os estragos provocados pelo furacão Sandy, nos Estados Unidos da América, e para o mesmo semanário, constatava que os milionários de Manhattan, a deslizarem nos seus carros de luxo como se fossem os donos do planeta, não fazem a menor ideia de como vivem os pobres. "Usam-nos como serviçais, e proporcionam-lhes empregos com estatuto de invisibilidade. Os portugueses, da comunidade em Newark, são famosos pela sua honestidade e por serem criados, governantes  e mulheres da limpeza de confiança. Gente que se pode meter dentro de casa. Simples, discretos, invisíveis. Sem nome nem história".

Também é certo, por aquilo que diz Clara Ferreira Alves, que pudemos, e devemos,  interpretar essa atitude dos trabalhadores portugueses nos E.U. da América, por exemplo, como francamente profissional: fazem o seu trabalho com correcção, executam as suas tarefas com profissionalismo e não se metem, mais do que devem, na vida dos outros, especialmente dos seus patrões. Mas também pode ser que o servilismo cultural dos portugueses os ajude a isso tudo.

Quando Portugal esteve sob dominação espanhola, esta cultura de servilismo era levada ao extremo para com a corte Filipina. Refere a História de Portugal coordenada por José Mattoso, no volume 5.3,  que na corte de Filipe III [de Portugal], em Valladolid, os Castelhanos zombavam da soberba e vaidade dos portugueses: «não cuida um fidalgo português se não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar, com os seus lacaios mais rica e custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas. Claro que o objectivo destes fidalgotes que se deslocavam a Valladolid,  emproados, empoados e seguidos pelo seu séquito de serviçais, era essencialmente  o de bajular o rei  e assim conseguir prebendas e favores políticos. Verificamos que, afinal, o servilismo é transversal na sociedade portuguesa e já vem de antanho.

O que sabemos hoje é que dignidade não rima com servilismo e que este não deve ser confundido com capacidade de realização e disponibilidade para correcção no nosso relacionamento com tudo e com todos.

Jacinto Lourenço


( texto editado em Setembro 2012 )

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O Barroco Português e A Obra de Arte Total Wagneriana








A verdadeira aspiração da arte é, pois, aquela que tudo abrange 1
                                     Richard Wagner

Estamos habituados a que quando se fala de Richard Wagner o tema seja apenas música, mas o compositor marcou o seu tempo, e o tempo pertencente ao futuro, também como inventor,  por assim dizer, do conceito de Obra de Arte Total.  Ele lamentava que na ópera do seu tempo a ênfase estivesse apenas colocada sobre a música, ao contrário do que acontecia nas representações gregas da antiguidade onde a música dialogava com todo um conjunto de especialidades artísticas visando o envolvimento total dos participantes no espectáculo. Este conceito desenvolvia-se à volta do pressuposto de que as diferentes expressões artísticas, envolvidas na produção da Obra de Arte, deveriam conjugar-se e complementar-se numa lógica narrativa em que pudesse ser reconhecida uma unidade formal contextualizada na obra que é apresentado ao público e na qual este  deveria sentir-se  como fazendo parte integrante da mesma. Claro que aqui estamos a pensar no plano principal do ofício de Wagner, isto é, o de um espectáculo musical que fosse realmente englobante e levasse o público à sensação de ser parte do todo que era esse espectáculo, e não apenas uma figura passiva do mesmo.
    
O compositor  considerava que as diferentes formas de expressão artística  até então se tinham fechado como que num círculo involutivo, pouco interessante para os espectadores, e  que não poderiam romper por si só, mas apenas em complementaridade, umas com as outras,  seriam capazes de desenvolver e apresentar novas propostas estéticas ou, se quisermos, uma nova narrativa integrada, de ordem artística.  É neste contexto, aliás, que Wagner escreverá,  num estudo intitulado A Obra de Arte do Futuro,  que  O homem artista só pode satisfazer-se perfeitamente na união de todas as modalidades artísticas na obra de arte colectiva. No isolamento de uma das suas capacidades artísticas será não-livre, será não inteiramente aquilo que pode ser; pelo contrário, na obra de arte colectiva será livre e será inteiramente aquilo que pode ser2 
    
Mas afinal Wagner não dizia nada de muito novo uma vez que  Gian Pietro Bellori, nascido em Roma (1613-1696), e porventura  a mais alta referência da cultura artística do seu tempo em toda a Europa, com o seu conceito de Bel Composto  já tinha teorizado sobre os princípios globalizantes da Obra de Arte.

Também no território português se  identificavam já, antes de Wagner,  excelentes exemplos daquilo  a que, numa outra dimensão artística,  o compositor viria a designar por Obra de Arte Total.  Este conceito Wagneriano já se encontrava integrado pelo Barroco Português através desse outro conceito do Bel Composto de Bellori.  Isto não quer dizer, naturalmente, que os dois conceitos sejam um e a mesma coisa, mas na verdade regem-se pelos mesmos princípios globalizantes de encarar a Obra de Arte,  distanciados, claro, por essas fronteiras chamadas tempo e realidade contextual.                                                                                                                                           
Precisamos esclarecer que quando Wagner fala de arte colectiva,  fala da síntese de múltiplas expressões artísticas que se conjugam no sentido de uma Obra de Arte Total, a Gesamtkunstwerk.  Mas, como dizemos,  esta síntese de múltiplas expressões artísticas já tinha sido experimentada e concretizada no Barroco português por via do conceito de Bel Composto. 

Luis de Moura Sobral, professor na Universidade de Montreal e especialista em pintura Ibérica do século XVII,  diz que  é a partir de 1660  que  se verifica em Portugal uma tendência para a concepção globalizante e unitária de um certo número de espaços construídos, o que se levará a cabo através de programas  decorativos envolventes, quase sempre de grande riqueza 3   Segundo o mesmo autor,  o Bel Composto estrutura-se em certas unidades […] mais simples […], compósitas, ou mais complexas […] que o historiador tem de ordenar para reconstruir o itinerário ou itinerários narrativos ou simbólicos previstos pelos respectivos autores .   Há,  já, na complementaridade das técnicas utilizadas no  Bel Composto visto em Portugal,  uma narrativa iconográfica que introduz um diálogo  temático, ou de diferentes temáticas,  entre si,  no sentido de explorar estéticas que levem os públicos a posições de simples auto-contemplação ou de expectação espiritual face à  envolvência  artística global em que se encontram.4

Neste curto texto, talvez a nossa melhor expectativa seja a de que, quem nos lê, perceba exactamente o conceito wagneriano de Obra de Arte Total, em toda a sua dimensão, de acordo com o que Wagner teorizou, olhando para uma mesmo aqui “à mão de semear”. Falamos do Convento/Palácio/Biblioteca /Basílica de Mafra. Como diz o seu director no sitio do  Palácio, no Google,  Mafra é arte com sentido – a certificação, o espectáculo, a representação do poder. Mafra é o esplendor do Barroco ! Estamos perante o monumento português que melhor reflecte o que podemos chamar de Obra de Arte Total: arquitectura, escultura, pintura, música, livros, têxteis. Um Património tipologicamente pensado […] que aqui configura uma realidade única. 

Jacinto Lourenço
2019, Dezembro
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     Wagner, Richard - A Obra de Arte do Futuro. 1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
2       Wagner, Richard - A Obra de Arte do Futuro. 1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
      Sobral, Luis de – Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português, p.303
4      Sobral, Luis de – Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português, p.305  

                                                                                                                                                                                                                                                                                      

    http://www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/Apresentacao/ContentList.aspx