quarta-feira, 17 de novembro de 2021


Construída no século XIII e reconstruída no século XVIII após ter sido devastada pelo terramoto de 1755, esta imagem da igreja católica e matriz de Lavre aviva-me memórias de criança nos idos de 60 do século passado. Recuo no tempo e revejo-me com idade de pouco mais de meia dúzia de anos, cá em baixo, num recinto térreo a olhar para a porta da igreja para ver quando sairiam os noivos e o seu séquito de convidados.
Emproados, os homens maduros ou rapazes tipo franganotes, nos seus melhores fatos domingueiros. As mulheres casadas e as raparigas casadouras vaidosas nos vestidos, saias e blusas. As vestimentas deixavam muitas vezes adivinhar o passar do tempo, mas nada que o desenxovalhar correctivo do ferro de passar aquecido a brasas não resolvesse. Aos homens assentava-lhes a roupa como no dia de tirar sortes, embora, caso raro, com os botões do casaco algo mais espichados. As mulheres e raparigas, vistosas, empoadas com 'mises' e 'permanentes' que, de tão invulgarmente usadas mais pareceriam um objecto estranho implantado em cabeças pouco dadas a luxos ocasionais. Mas aos olhos dos homens e dos franganotes que raramente as viam sem roupas de trabalho; manguitos, lenços a tapar a cara e chapéus pretos a cobrir a cabeça, mostravam-se como se fossem rainhas e princesas.
Os rostos e mãos, fossem de homens ou mulheres, no comum dos casos e na maioria dos casamentos, deixavam adivinhar, pela pele tisnada, o trabalho duro do campo debaixo de um sol inclemente que não os poupava desde que nascia até que se ocultava no horizonte. Mais do que um casamento, era a festa que importava e se ansiava, terminando sempre com um baile movido, noite adentro, pelo acordeão, com as raparigas casadouras e os franganotes a iludirem os olhares perscrutadores das mães e os homens a preferirem o prosaico embalo de uns bons copos de vinho ou uma bebida mais fina se a apanhassem. Aos homens, o que os interessava, em boa verdade, e o que os divertia e fazia exultar, era muito mais a observação do jogo femeeiro dos franganotes. Iam-se revendo na sua própria juventude desfiada de baile em baile ao som do mesmo acordeão, a roubar afagos e apertos que os deixavam a sonhar com outras ousadias.
A nossa visão de crianças, amontoadas a partir de cá de baixo, na base da escada, e fixada no seu topo, só queria encontrar, nas mãos dos padrinhos, o taleigo onde se transportavam todas as expectativas fugazes do momento.
As velhas, espertas, atrapalhavam a criançada como podiam e apanhavam as amêndoas que voavam fazendo com que lhes caíssem junto dos pés imóveis. Meninos e meninas, ávidos de doces, agatanhávamo-nos e empurrávamo-nos para, entre mãos cheias de terra e pó, encontrar algumas amêndoas que nos sobrevoavam e caíam no chão empoeirado. Rolávamos então numa quase luta onde de amigos passávamos a adversários de ocasião naquela batalha sem quartel pelo melhor quinhão.
Chegados a casa, amêndoas metidas num copo com água bem agitada para retirar o pó, e o gozo de sentir aquele pequeno rebolo de açúcar derreter-se na boca era prémio suficiente para a nossa ânsia e sofreguidão após sofridos momentos no enxurdo poeirento.
Mas nem sempre os padrinhos dos casamentos eram pródigos nas oferendas à gaiatagem. Quando isso acontecia, os fonas eram mimoseados com uma lenga lenga repetida à exaustão para ver se o enxovalho lhes servia de emenda : "casamento xoxo que o padrinho é mocho, casamento xoxo que o padrinho é mocho". (na frase citada, a palavra "mocho" tem no Alentejo uma conotação pejorativa e não se refere ao simpático Mocho, que é uma ave bem bonita).
Vezes sem conta subi aquelas escadas. A maior parte para brincar no Adro à volta da igreja; as outras para conseguir que o padre Flausino me assinasse o livrinho que provava ter assistido à missa dominical. Sem ele, não havia televisão no domingo à tarde. Ora, como é bom de imaginar, o "Super Rato" só dava ao domingo à tarde! Se não assistíssemos, seria uma perda irreparável. Uma tirania que só poderia ser previamente redimida pelo pagamento de cinco tostões para entrar na sala da televisão, mas que eu, regra geral, não possuía.
A designada "televisão do padre" era a única (pelo menos que eu saiba) particular que havia em Lavre. Alimentava-a um pequeno gerador eléctrico que ia queimando o combustível e espalhando a pestilência da queima pela sala. Além de mais um ou outro dia da semana, também era ligada aos sábados à noite numa emissão televisiva concorrida essencialmente por mulheres que carregavam consigo filhos ou netos para lhes lerem as legendas dos filmes. O serão passava-se assim, numa sala fria, à volta de uma braseira daquelas que faziam "cabras" nas pernas quando apertava o inverno. A tarefa que nos era destinada nessas noites transformava-se em tédio e dava lugar, algumas vezes, a reinterpretações e criatividade para as falas dos actores, sem destoar muito da acção para não dar nas vistas.

Existiam mais duas ou três televisões nos cafés da terra, mas aí os gaiatos não podiam entrar sem serem acompanhados por um adulto e, regra geral, apenas para ver o Bonanza ou, eventualmente, uma tourada em que actuasse o cavaleiro Luís Miguel da Veiga, que tinha raízes na vila, onde nasceu também Simão da Veiga. Nesses dias Lavre mudava-se para os cafés onde as pessoas se amontoavam extravasando para a rua. Ver um homem, figura cimeira do toureio a cavalo de então, ligado à Vila, dar cartas nas arenas portuguesas, era um orgulho para tanta gente simples a que uma vida de quase semi-escravatura de trabalho duro e rude no campo, de sol a sol, não permitia grandes alegrias ou divertimentos.
Em dia solarengo espraiamos a vista para sul, a partir do Adro da velha igreja matriz; o tapete da rústica paisagem alentejana quase vem morrer-nos aos pés. Corta-nos a respiração, ergue-se plena de um verde que o Outono trouxe salteado por manchas de sobreiros e azinheiras que sempre lá estiveram. Fazemos sobrevoar o olhar pelos muitos telhados novos, ocres, de um bairro de casas de paredes alvadias. Mesmo que não possamos ver, podemos adivinhá-las com gente dentro, pessoas que se têm quedado em Lavre ou que elegeram a vila para retiro de dias pachorrentos. Mais ao longe, do lado de lá da ribeira, os novos 'Montes' erguem-se e impõem-se à paisagem denunciadores de um certo novo-riquismo; gente de Lisboa e alguns famosos, dizem-me.
Apesar de tudo, a vila parece resistir e conviver bem com o passar das décadas. É certo que à vista dos visitantes ocasionais não se mostram habitantes nas ruas; porque não existem, simplesmente, ou porque estão demasiado velhos para sair à rua. O comércio é resumido. Resistem dois ou três estabelecimentos dos muitos que a vila possuía. Há um lar onde estarão alguns dos velhos que não encontramos na rua. Uma conquista de 1974 nestas terras do interior, mas que se ergueu através do impulso visionário do padre Flausino.
Das pessoas que conhecíamos em Lavre, na nossa infância, a maior parte delas saíram em busca de mais auspicioso futuro nas grandes cidades ou vilas mais desenvolvidas, senão mesmo no estrangeiro. Sobram maioritariamente as que só podemos visitar em memória no bem cuidado cemitério onde repousa também a de pessoas que amamos. Mas sim, a beleza de Lavre não foi adulterada. Mantêm-se intocada e esplendorosa, pelo menos aos nossos olhos de menino que gostam de a preservar assim.
Os telhados das casas novas que observamos a partir do Adro deixam antever que Lavre vai persistir na sua secular história iniciada muito tempo antes de D.Dinis lhe outorgar foral em 1304.
Na foto que tirámos dispensavam-se bem as duas árvores. Excrescências que encobrem o património edificado e o desfeiam. Mas esperamos que isso seja resolvido um dia.
Iremos decerto voltar ao nosso chão alentejano, mas até lá, havemos de regressar à escrita sobre a nossa relação com ele.
Sobre Lavre e a literatura que a aborda, que nos aflora a mente, e que nos desencanta pelas memórias que traiu sem pontos nem vírgulas, só sobra a convicção comum de que esta velha vila que me viu crescer menino e adolescente seguirá agarrada ao mesmo chão que pisámos até finais dos anos 60. Agarramo-nos, afinal, a esse consolo, o de nos sabermos pertença sua e que ele nunca deixará de fazer parte de nós.


Jacinto Lourenço
2021, Novembro, 16

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

PORTUGAL EM MODO FRAUDE...


(imagem: jornal Público)

Regresso ao tema que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) trouxe ao nosso conhecimento recentemente, de que os enfermeiros portugueses são dos mais mal pagos entre os países que integram esta organização internacional (em paridade de poder de compra) e apenas acima de Eslováquia, Lituânia, Letónia e Hungria, e que os salários dos médicos regrediram para valores reais (descontada a inflação) anteriores aos praticados em 2010, talvez convenha acrescentar que esta situação terá, certamente, um âmbito muito mais alargado tocando outras profissões qualificadas ou não qualificadas.
A verdade social e económica percepcionada em Portugal é a de que, quase meio século depois de instaurada uma democracia, que devia ser para todos, resulta ter afinal sido construída para quem consegue situar-se nas franjas do poder e assim usufruir das benesses e privilégios que este distribui, com toda a prodigalidade, por aqueles que lhe são próximos. Ora, como é evidente, a ideia generosa que presidiu ao 25 de Abril de 1974 estava muito longe da realidade que se instalou no país desde então.
Se exceptuarmos a liberdade conquistada ( que não é coisa de somenos, se nos lembrarmos do regime em que vivemos anteriormente), e após muitos milhares de milhões de euros em fundos da UE injectados para o desenvolvimento português, (sem que se veja, na maior parte dessas verbas, onde e como foram aplicadas) nada de muito substancial do regime salazarista foi
anulado. O caciquismo partidário instalou-se com outras cores numa rede tentacular que não deixa escapar nada ou quase nada que não termine nos seus bolsos. O nepotismo generalizou-se. O empobrecimento da população é um aviltamento. A corrupção é transversal na nossa sociedade. Os portugueses continuam a ter que emigrar aos milhares e, ao fim de 48 anos continuamos na cauda da Europa em termos sócio-económicos, mas agora ultrapassados por nações que nunca imaginámos que alguma vez o pudessem fazer. As famílias passam o tempo a olhar para o calendário e a imaginar como farão chegar o rendimento disponível ao fim do mês.
As maiores e melhores empresas nacionais, as mais lucrativas, as que podiam ajudar a economia nacional de outra forma, foram entregues por "patacos" a quem lhes pode lançar mão, facilitados esses por autênticos "Cavalos de Tróia", instalados nos sucessivos governos em Portugal, mas sempre na primeira linha de defesa dos interesses estrangeiros, que para isso lhes pagariam através de todos os esquemas financeiros que se possam imaginar, culminando ainda, mais tarde, com uma boa colocação em empresas ou bancos de nomeada internacional.
A cultura é inexpressiva e acessível apenas nos principais centros populacionais, no resto do país é um semi-deserto.
Dos jovens que terminam a sua formação académica, poucos são os que conseguem romper o ciclo de precarização no emprego e, por consequência, poucos podem assumir uma vida familiar independente fora das casas dos pais. Por outro lado, os que não vão além do ensino secundário e não possuem qualquer qualificação profissional, ou passarão o resto da sua vida em empregos que não pagam mais do que o ordenado mínimo ou ficam a parasitar os pais enquanto estes o permitem, e permitem muitas vezes, levando uma vida sem estudar ou trabalhar e sem quaisquer objectivos futuros, mas com dinheiro nos bolsos para cigarros, álcool, ténis de marca ou telemóveis topo de gama.
Os nossos velhos são entregues para morrerem nos meandros dessa nova indústria designada metaforicamente por "lares", que na sua maior parte se assemelham a "campos de concentração" pavorosos. Para os seus filhos ou famílias não existem escolha, tempo ou até dinheiro que sugiram pensar noutra solução, que na maior parte dos casos não têm.
Quem têm um trabalho deve mantê-lo a todo o custo mesmo que mal pago e sem horário de trabalho a atender à lei. As entidades patronais não olham, nem são para isso vocacionadas, para os problemas que os seus trabalhadores têm com pais ou filhos.
A justiça tornou-se simplesmente risível.
Em resumo e para atalhar caminho: após tantos anos de liberdade quantos os passados sob a ditadura do Estado Novo o país é pouco menos que uma fraude imposta por este regime a que chamam democrático mas que transporta dentro de si um artefacto político explosivo que irá implodir um dia destes e que nos levará a todos se não tivermos arte ou engenho para mudar o rumo.
As únicas e verdadeiras grandes construções da democracia foram o Serviço Nacional de Saúde e a educação. Pois nem mesmo essas parecem estar isentas de serem reduzidas a escombros por uma classe política apenas focada nos seus próprios interesses e jogos de poder.

Jacinto Lourenço