A verdadeira aspiração da arte é, pois, aquela que tudo abrange 1
Richard
Wagner
Estamos habituados a que quando se fala de Richard
Wagner o tema seja apenas música, mas o compositor marcou o
seu tempo, e o tempo pertencente ao futuro, também como inventor, por
assim dizer, do conceito de Obra de Arte Total. Ele lamentava que na ópera do seu tempo a ênfase estivesse apenas colocada sobre a música, ao contrário do que acontecia nas representações gregas da antiguidade onde a música dialogava com todo um conjunto de especialidades artísticas visando o envolvimento total dos participantes no espectáculo. Este
conceito desenvolvia-se à volta do pressuposto de que as diferentes expressões
artísticas, envolvidas na produção da Obra de Arte, deveriam conjugar-se e
complementar-se numa lógica narrativa em que pudesse ser reconhecida uma
unidade formal contextualizada na obra que é apresentado ao público e na qual
este deveria sentir-se como fazendo parte integrante da mesma. Claro que aqui estamos a pensar no plano principal do ofício de Wagner, isto é, o de um espectáculo musical que fosse realmente englobante e levasse o público à sensação de ser parte do todo que era esse espectáculo, e não apenas uma figura passiva do mesmo.
O compositor
considerava que as diferentes formas de expressão artística até então se
tinham fechado como que num círculo involutivo, pouco interessante para os
espectadores, e que não poderiam romper por si só, mas apenas em
complementaridade, umas com as outras, seriam capazes de desenvolver e
apresentar novas propostas estéticas ou, se quisermos, uma nova narrativa
integrada, de ordem artística. É neste contexto, aliás, que Wagner
escreverá, num estudo intitulado A Obra de Arte do Futuro,
que O homem artista só pode satisfazer-se perfeitamente na união
de todas as modalidades artísticas na obra de arte colectiva. No isolamento de
uma das suas capacidades artísticas será não-livre, será não inteiramente
aquilo que pode ser; pelo contrário, na obra de arte colectiva será livre e
será inteiramente aquilo que pode ser. 2
Mas afinal Wagner não
dizia nada de muito novo uma vez que Gian
Pietro Bellori, nascido em Roma (1613-1696), e porventura a mais alta
referência da cultura artística do seu tempo em toda a Europa, com o seu
conceito de Bel Composto já tinha teorizado sobre os princípios globalizantes
da Obra de Arte.
Também no território
português se identificavam
já, antes de Wagner, excelentes exemplos daquilo a que,
numa outra dimensão artística, o compositor viria a designar por Obra de Arte
Total. Este conceito Wagneriano já se encontrava integrado
pelo Barroco Português através desse outro conceito do Bel
Composto de Bellori. Isto não quer dizer,
naturalmente, que os dois conceitos sejam um e a mesma coisa, mas na verdade
regem-se pelos mesmos princípios globalizantes de encarar a Obra de Arte,
distanciados, claro, por essas fronteiras chamadas tempo e realidade
contextual.
Precisamos esclarecer
que quando Wagner fala de arte colectiva, fala da síntese de múltiplas expressões
artísticas que se conjugam no sentido de uma Obra de Arte Total, a
Gesamtkunstwerk. Mas, como dizemos, esta síntese de múltiplas
expressões artísticas já tinha sido experimentada e concretizada no
Barroco português por via do conceito de Bel Composto.
Luis de Moura Sobral,
professor na Universidade de Montreal e especialista em pintura Ibérica do século
XVII, diz que é a partir de
1660 que se verifica em Portugal uma tendência para a
concepção globalizante e unitária de um certo número de espaços
construídos, o que se levará a cabo através de programas decorativos
envolventes, quase sempre de grande riqueza 3.
Segundo o mesmo autor, o Bel Composto estrutura-se
em certas unidades […] mais simples […],
compósitas, ou mais complexas […] que o historiador tem
de ordenar para reconstruir o itinerário ou itinerários narrativos ou simbólicos
previstos pelos respectivos autores . Há, já, na complementaridade
das técnicas utilizadas no Bel Composto visto em
Portugal, uma narrativa iconográfica que introduz um
diálogo temático, ou de diferentes temáticas, entre si,
no sentido de explorar estéticas que levem os públicos a posições de
simples auto-contemplação ou de expectação espiritual face
à envolvência artística global em que se encontram.4
Neste curto texto,
talvez a nossa melhor expectativa seja a de que, quem nos lê, perceba
exactamente o conceito wagneriano de Obra
de Arte Total, em toda a sua dimensão, de acordo com o que Wagner teorizou,
olhando para uma mesmo aqui “à mão de semear”. Falamos do
Convento/Palácio/Biblioteca /Basílica de Mafra. Como diz o seu director no
sitio do Palácio, no Google, Mafra é arte com sentido – a
certificação, o espectáculo, a representação do poder. Mafra é o esplendor do
Barroco ! Estamos perante o monumento português que melhor reflecte o que
podemos chamar de Obra de Arte Total: arquitectura, escultura, pintura, música,
livros, têxteis. Um Património tipologicamente pensado […] que
aqui configura uma realidade única.
Jacinto Lourenço
2019, Dezembro
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1 Wagner,
Richard - A Obra de Arte do Futuro.
1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
2 Wagner,
Richard - A Obra de Arte do Futuro.
1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
3 Sobral,
Luis de – Un bel composto: a obra de arte
total do primeiro Barroco português, p.303
4 Sobral,
Luis de – Un bel composto: a obra de arte
total do primeiro Barroco português, p.305
http://www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/Apresentacao/ContentList.aspx
http://www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/Apresentacao/ContentList.aspx