quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O Barroco Português e A Obra de Arte Total Wagneriana








A verdadeira aspiração da arte é, pois, aquela que tudo abrange 1
                                     Richard Wagner

Estamos habituados a que quando se fala de Richard Wagner o tema seja apenas música, mas o compositor marcou o seu tempo, e o tempo pertencente ao futuro, também como inventor,  por assim dizer, do conceito de Obra de Arte Total.  Ele lamentava que na ópera do seu tempo a ênfase estivesse apenas colocada sobre a música, ao contrário do que acontecia nas representações gregas da antiguidade onde a música dialogava com todo um conjunto de especialidades artísticas visando o envolvimento total dos participantes no espectáculo. Este conceito desenvolvia-se à volta do pressuposto de que as diferentes expressões artísticas, envolvidas na produção da Obra de Arte, deveriam conjugar-se e complementar-se numa lógica narrativa em que pudesse ser reconhecida uma unidade formal contextualizada na obra que é apresentado ao público e na qual este  deveria sentir-se  como fazendo parte integrante da mesma. Claro que aqui estamos a pensar no plano principal do ofício de Wagner, isto é, o de um espectáculo musical que fosse realmente englobante e levasse o público à sensação de ser parte do todo que era esse espectáculo, e não apenas uma figura passiva do mesmo.
    
O compositor  considerava que as diferentes formas de expressão artística  até então se tinham fechado como que num círculo involutivo, pouco interessante para os espectadores, e  que não poderiam romper por si só, mas apenas em complementaridade, umas com as outras,  seriam capazes de desenvolver e apresentar novas propostas estéticas ou, se quisermos, uma nova narrativa integrada, de ordem artística.  É neste contexto, aliás, que Wagner escreverá,  num estudo intitulado A Obra de Arte do Futuro,  que  O homem artista só pode satisfazer-se perfeitamente na união de todas as modalidades artísticas na obra de arte colectiva. No isolamento de uma das suas capacidades artísticas será não-livre, será não inteiramente aquilo que pode ser; pelo contrário, na obra de arte colectiva será livre e será inteiramente aquilo que pode ser2 
    
Mas afinal Wagner não dizia nada de muito novo uma vez que  Gian Pietro Bellori, nascido em Roma (1613-1696), e porventura  a mais alta referência da cultura artística do seu tempo em toda a Europa, com o seu conceito de Bel Composto  já tinha teorizado sobre os princípios globalizantes da Obra de Arte.

Também no território português se  identificavam já, antes de Wagner,  excelentes exemplos daquilo  a que, numa outra dimensão artística,  o compositor viria a designar por Obra de Arte Total.  Este conceito Wagneriano já se encontrava integrado pelo Barroco Português através desse outro conceito do Bel Composto de Bellori.  Isto não quer dizer, naturalmente, que os dois conceitos sejam um e a mesma coisa, mas na verdade regem-se pelos mesmos princípios globalizantes de encarar a Obra de Arte,  distanciados, claro, por essas fronteiras chamadas tempo e realidade contextual.                                                                                                                                           
Precisamos esclarecer que quando Wagner fala de arte colectiva,  fala da síntese de múltiplas expressões artísticas que se conjugam no sentido de uma Obra de Arte Total, a Gesamtkunstwerk.  Mas, como dizemos,  esta síntese de múltiplas expressões artísticas já tinha sido experimentada e concretizada no Barroco português por via do conceito de Bel Composto. 

Luis de Moura Sobral, professor na Universidade de Montreal e especialista em pintura Ibérica do século XVII,  diz que  é a partir de 1660  que  se verifica em Portugal uma tendência para a concepção globalizante e unitária de um certo número de espaços construídos, o que se levará a cabo através de programas  decorativos envolventes, quase sempre de grande riqueza 3   Segundo o mesmo autor,  o Bel Composto estrutura-se em certas unidades […] mais simples […], compósitas, ou mais complexas […] que o historiador tem de ordenar para reconstruir o itinerário ou itinerários narrativos ou simbólicos previstos pelos respectivos autores .   Há,  já, na complementaridade das técnicas utilizadas no  Bel Composto visto em Portugal,  uma narrativa iconográfica que introduz um diálogo  temático, ou de diferentes temáticas,  entre si,  no sentido de explorar estéticas que levem os públicos a posições de simples auto-contemplação ou de expectação espiritual face à  envolvência  artística global em que se encontram.4

Neste curto texto, talvez a nossa melhor expectativa seja a de que, quem nos lê, perceba exactamente o conceito wagneriano de Obra de Arte Total, em toda a sua dimensão, de acordo com o que Wagner teorizou, olhando para uma mesmo aqui “à mão de semear”. Falamos do Convento/Palácio/Biblioteca /Basílica de Mafra. Como diz o seu director no sitio do  Palácio, no Google,  Mafra é arte com sentido – a certificação, o espectáculo, a representação do poder. Mafra é o esplendor do Barroco ! Estamos perante o monumento português que melhor reflecte o que podemos chamar de Obra de Arte Total: arquitectura, escultura, pintura, música, livros, têxteis. Um Património tipologicamente pensado […] que aqui configura uma realidade única. 

Jacinto Lourenço
2019, Dezembro
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     Wagner, Richard - A Obra de Arte do Futuro. 1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
2       Wagner, Richard - A Obra de Arte do Futuro. 1ª ed. Lisboa, Antígona, 2003, p.177
      Sobral, Luis de – Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português, p.303
4      Sobral, Luis de – Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português, p.305  

                                                                                                                                                                                                                                                                                      

    http://www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/Apresentacao/ContentList.aspx