quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Somos todos Cidadãos iguais em Direitos e Deveres






Faz meia dúzia de dias atrás que trouxe aqui o episódio do 'Mauzinho',  o filho do cabo da guarda lá da terra, episódio que não era uma metáfora de coisa nenhuma por ser verdadeiro. Pensei desde logo que voltaria ao tema, agora para lembrar o cabo João (*), um agente da GNR com verdadeiro sentido cívico, moral e ético da sua missão numa pequena terra alentejana com todas as condições sócio-económicas formatadas pela realidade que a existência do Estado Novo, ou melhor dito, da ditadura Salazarista quis  impor aos portugueses com recurso a uma unicidade de pensamento, maneira de ser,  ver e estar. Em resumo, um comportamento social balizado pela doutrina aprendida do fascismo italiano  decalcada e adaptada à ditadura que em terras lusas ocorreu de 1926  a 1974, com o conluio, é bom não esquecer, da igreja católica.

Sentado no banco de madeira do velho cacilheiro que resfolegava para chegar à outra margem, distraído com a leitura de um livro, reparo de soslaio num primeiro sargento da GNR que viajava de pé e não deixava de me fitar. Imaginei que talvez estivesse a tentar descortinar se eu era alguém que se tivesse cruzado com ele nalguma operação movida pela Guarda. Senti-me desconfortável com o seu olhar fixo na minha direcção mas, ao mesmo tempo, absolutamente tranquilo. Afinal estava apenas a fazer uma viagem de cacilheiro num final de dia de trabalho.                                                    
O primeiro sargento, trajando o habitual fato de cotim, soltou as amarras da sua curiosidade abordando-me  e perguntando se "eu não o estava a conhecer ? ".   Respondi  evasivamente, entre uma estupefacção expectante, que não, que nunca tinha conhecido ou sequer tivera,  na minha vida, qualquer contacto com alguém da GNR com o posto de cabo para cima.  Era melhor assim, achava eu,  acabar com a conversa que estava a nascer uma vez que não queria alongar-me  em falas com um agente da GNR. Mas o homem quis continuar. Fechei o livro que tinha entre mãos e fixei-o directamente, em jeito de desafio, para que me dissesse exactamente ao que vinha, e foi o que ele fez.   "Então não se lembra do cabo 'João', lá na terra, no Alentejo ?".  Foi quando as escamas me caíram dos olhos e a memória recuou cerca de dez anos até ao período em que tinha estado a fazer a instrução primária no Alentejo. 

Tirei-lhe o recorte das feições, coloquei-lhe umas divisas imaginárias de cabo da Guarda, respirei fundo e disse-lhe, com satisfação não disfarçada,  num sorriso franco e aberto, que sim, que já me lembrava muito bem  quem ele era e quem ele tinha sido nesse período em que se cruzou comigo naquela pequena terra do Alentejo.  Demos um abraço. Perguntou-me pela família, pelos meus avós, pelos meus tios, pela minha vida, pelo meu percurso, o que fazia, onde morava.  Sobre ele, e sem que eu lhe perguntasse o que quer que fosse, contou-me um pouco do trajecto desde que saíra  lá da terra. Agora já não era cabo, era sargento. Dei-lhe os  parabéns e fiquei a pensar de mim para mim que um homem bom e íntegro, até mesmo numa força como era a GNR nessa altura, ao serviço de uma ditadura no Alentejo rural dos anos sessenta, e sem precisar exibir ostentação de poder ou ascendência autoritarista  sobre os seus semelhantes, consegue ter uma boa carreira profissional, sem a ter consolidado à custa de exercícios abusivos do poder em que esteve investido naquele pequeno posto que comandou e, estou certo, nas demais funções que desempenhou ao longo da sua carreira.                                                                                                                                          
O cabo 'João' era apenas um entre tantos militares da GNR, colocados no Alentejo mais ou menos profundo e recrutados, regra geral, bem no norte do país, que isolado do seu meio de origem e da sua família, podia ter "descarregado" a sua frustração pessoal sobre quem lhe "estivesse à mão". Foi sua opção não seguir por esse caminho 'largo',  embora nesse tempo o respaldo para qualquer acção potencialmente abusiva da sua parte tivesse de certeza o  apoio da força que integrava e o aplauso dos senhores da terra.  Nunca o fez. Sabia quem era e qual a responsabilidade social da sua função. Hoje tudo é diferente, ou melhor dito: hoje tudo é afinal mais parecido com os anos sessenta e as ditas forças da ordem, agem como se o primado da lei pudesse dar cobertura a todos os seus actos e a todas as suas inacções ou omissões. Os cidadãos estão genericamente entregues a si próprios ou então entregues às omissões e inacções de outros cidadãos fardados. Mérito para todos aqueles que não repudiam o primado da sua função social enquanto integrados numa qualquer força militar ou policial e, felizmente, ainda existem, e são muitos. De resto somos todos cidadãos iguais em direitos e deveres. O cabo 'João' percebeu isto muito bem.

A viagem do velho cacilheiro estava a terminar, percebi pelo ronco um pouco mais forte que vinha abafado da casa das máquinas. Despedimo-nos, desejei-lhe o melhor para a sua vida. Nunca mais nos cruzámos desde esse dia. Já passou quase meio século. Retenho a memória de um homem bom, mas que por ser bom não deixava de ser cumpridor das suas obrigações profissionais. Nunca lhe reconheci o mesmo perfil de fúria autoritária como o que enformava  a Guarda no tempo do cabo 'Mauzão', no Posto lá da terra.

Faz meia dúzia de dias atrás que trouxe aqui o episódio do 'Mauzinho',  o filho do cabo da guarda lá da terra, o 'Mauzão',  episódio que não era uma metáfora de coisa nenhuma por ser verdadeiro. Pensei desde logo que voltaria ao tema, mas agora para lembrar o cabo 'João' (*),  que sucedeu ao cabo 'Mauzão' no comando do posto. Um agente da GNR com verdadeiro sentido cívico, moral e ético da sua missão numa pequena terra alentejana com todas as condições sócio-económicas formatadas pela realidade que a existência do Estado Novo, ou melhor dito, que a ditadura Salazarista,  quis  impor aos portugueses com recurso a uma unicidade de pensamento, maneira de ser, ver e estar, em resumo um comportamento social balizado pela doutrina aprendida do fascismo italiano e adaptada à ditadura imposta em terras lusas de 1926  a 1974, com o conluio, é bom não esquecer, da igreja católica, cujo chefe máximo em Portugal, o Cardeal Cerejeira, era quase uma alma siamesa de Salazar.

É preciso que se  saiba que, da perspectiva do regime de antes do 25 de Abril de 1974,  o autoritarismo  revestia, por essa altura, em especial nas vilas e aldeias do Alentejo,  o exercício do rigor mascarado de fúria autoritária que acabava por se materializar na ponta dos cassetetes, nas sevícias, ou nas multas desproporcionadas que visavam, umas e outras as costas ou as  magras jornas dos trabalhadores rurais do Alentejo. As lutas e greves pela jornada diária de oito horas, e não de sol a sol, levaram muitos ao posto local da Guarda, outros a serem encaminhados para o posto da sede de concelho, e alguns a acabarem na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, sede da PIDE/DGS. Um caminho que tinha quase sempre como fim de rota a prisão de Caxias.  A GNR, em particular no Alentejo, foi sempre o braço armado do regime salazarista, como o tinha sido de outros regimes anteriores e continuaria a ser nos posteriores.  Mais do que manter a ordem, mantinha o terror a mando dos latifundiários locais, os verdadeiros donos do Alentejo de então, ou das ordens provenientes dos mandatários da ditadura de Salazar.  Normalmente, quando começava a bater ou a agir de forma desproporcionada, cegava na carreira sem direcção certa.

Ao ver na televisão as imagens e a denúncia do que se passou em Portalegre, com a violência exercida sobre os instruendos, e supostamente futuros guardas da GNR, e que atirou com alguns para as urgências hospitalares, fiquei a pensar se tal tipo de treino ainda será o mesmo que era fornecido aos instruendos que entravam para a GNR no tempo do Estado Novo, quando esta força estava ao serviço dos grandes  terratenentes alentejanos de então e da ditadura salazarista que durante 48 anos manteve Portugal na 'idade das trevas'. Será que os responsáveis máximos da Guarda e os decisores políticos de agora imaginam que ainda vivem em ditadura salazarista e que se devem preparar para concretizar, na prática, o treino que administram aos seus instruendos ?  Não seria melhor fazer-se à GNR o mesmo que fizeram à Guarda Fiscal, extiguindo-a, para assim dar lugar a uma força que não seja um espelho de vergonha para o país e quebre, por uma vez, esta 'escola'  que tem feito um trajecto velho e contorcido e  preparado os agentes  para bater ou apanhar  os cidadãos, qual passarinheiro que apanha as suas vítimas com um pouco de visgo como se cada cidadão fosse um malfeitor ?   É que não me deixa, em absoluto, nada descansado o processo de apuramento de responsabilidades e aplicação de justiça, dentro dos muros altos da GNR, quando é público que, depois de tudo o que se passou em Portalegre, com a violência sem medida a ser exibida, o facto de nem uma só queixa ter sido apresentada por qualquer um dos agredidos naquela escola de militares da GNR.  Talvez por isso somos levados a pensar que a GNR precisa  urgentemente, dentro do seu corpo militar, de muitos mais  homens como o cabo 'João', capazes de verem na generalidade de cada cidadão português alguém a quem se pede um comportamento socialmente responsável, mas que requer reciprocidade de tratamento por parte das forças militares e policiais e não a aplicação do autoritarismo e da força desmesurada só porque apetece,  mesmo que na sua frente esteja um cidadão com deveres, é certo, mas com todos os direitos que a lei lhe confere. 


(*) Por  razões de protecção de identidade não divulgamos o verdadeiro nome do cabo 'João'. 



Jacinto Lourenço -   Dezembro, 2018