"Ao que tem fome e te rouba o último pedaço de pão, chamas teu inimigo,
mas não saltas ao pescoço do ladrão que te rouba sem nunca ter sentido fome."
Bertolt Brecht
A RTP Memória passou há dois ou três anos atrás as aventuras e desventuras de D. Camilo e Pepone. Gravei e fui revendo. Não deixo de sorrir, ma já não me divertem como nos anos sessenta, até porque o que alegrava a minha adolescência ingénua de há quarenta e tal anos cobre-me agora de um quase "ridículo" quando revejo o D.Camilo e penso na minha incapacidade de então para discernir a mensagem subliminar que D. Camilo transmitia sob a capa do bem e do mal enquadrados no plano da oposição entre a política e a religião, ou melhor, de uma certa política e de uma determinada religião.
Mas afinal, o que são o bem e o mal ? Bom, não vou discutir agora o conceito embutido em mim pela cultura judaico-cristã. Tão pouco o que resultava da mensagem maniqueísta vista em D.Camilo. Mas talvez, porventura de uma forma simplista, possamos dizer que tanto o bem como o mal são coisas do âmbito de percepção do senso comum, que todos sabemos o que é o bem e o mal ou que todos podemos discernir o que está bem e o que está mal feito.
E, já agora, tão pouco me interessa trazer a discussão sobre os conceitos filosóficos à volta do bem e do mal.
O mundo, tal qual o conhecemos hoje, já não é visto como há quarenta ou cinquenta anos atrás. O bem e o mal ganharam outras dimensões e outros contornos. Talvez mesmo novas conceptualizações. A mensagem maniqueísta que o estado novo pretendia fazer passar nos anos 60 em Portugal, e onde os filmes de D.Camilo assentavam que nem uma luva, ajoelhou perante os ventos de Abril. Volvidas algumas décadas, D.Camilo e Pepone já não encaixam nestes tempos de pós- modernidade, mesmo se traduzem uma velha realidade sociológica que se espraia envolta na espuma do tempo. O bem e o mal são-nos hoje apresentados veiculados por diferentes e intrincadas manifestações sociológicas, muito mais complexas e estruturadas, de difícil descodificação mas, na essência, a terra que deixa um ou outro germinar continua presente nas sociedades e nos homens do nosso tempo, de todos os tempos, aliás. D.Camilo ou Pepone não passavam de metáforas que, de uma forma ou de outra, e despidas da sua roupagem política, se projectam em todos os tempos, em todas as sociedades, em todas as vivências.
A questão principal que se coloca hoje à volta do bem e do mal é a relativização ética e moral dos conceitos, coisa que tanto D. Camilo como Pepone desconheciam o que poderia significar. Mas também não é sobre isso que quero falar. Talvez seja matéria para umas páginas lá mais à frente no tempo.
Mas que me assusta a relativização da ética e da moral sentida nos nossos tempos, lá isso assusta. E assusta porque, ainda que quisesse manter-me à margem, e não quero, tal relativização havia sempre de me desafiar, de me provocar.
Há coisas que fazemos bem relativizar, outras nem por isso e outras ainda porque não devemos mesmo relativizar, a não ser que queiramos jogar aos dados com aquilo que somos.
Eu não gosto e nem quero jogar aos dados com coisas sérias. E porque é que digo isto ? É porque durante muito tempo, em anos recuados, eu relativizei coisas que não devia, outras coisas não percebi que, relativizando, o tempo, mestre como sempre, haveria de me ensinar duras lições a expensas próprias, e outras ainda, sabendo que não podia relativizar, relativizei porque não me apetecia estar com o trabalho de separar o trigo do joio. Ora, como bem sabemos, o joio nunca dará pão.
Há coisas que só o passar dos anos e as experiências de vida nos ensinam.
Felizmente nunca soube o que significa passar fome, mas quando digo passar fome, não quero significar com isso aquela fome momentânea que saciamos pouco depois de a começarmos a sentir, não, não é disso que falo. Falo mesmo da fome que não pode ser saciada por total ausência de recursos que permitam a saciedade.
Ora, existem hoje no meu país vários tipos de fome; a fome que é fome de alimentos essenciais à vida, mas também uma fome metafórica ou alegórica, se quisermos: fome de justiça, fome da verdade, fome de honestidade, fome de igualdade de direitos e deveres, fome de cidadania, fome de respeito, fome de convicções, fome de ética e valores, fome de moral e moralização, fome espiritual, fome de palavra e de palavras, fome de autoridade legítima e legitimada, fome de rectidão, etc.
É pois sobre estes tipos de fomes que me proponho escrever por estes dias, por aqui. Até porque tenho fome de escrever.
J. Lourenço
*) Robert Louis Stevenson