quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

O Ocidente Refém da Rússia

 


   A
política feita por pessoas sérias caiu há muito no ridículo. Na ausência de gente séria a fazer política e a governar os países, um pouco pelo mundo fora, surgem os oportunistas, vigaristas, pantomineiros, criminosos, "palhaços", potenciais ditadores e radicais de esquerda ou direita, conforme os tempos ou as oportunidades. Mas não nos aparecem do vácuo, sempre estiveram entre nós sem que déssemos por eles, à espera de uma oportunidade. Devíamos ter aprendido as lições da História. Mas não, não aprendemos nada, nunca!

Se alguma coisa devíamos ter aproveitado da obra de pessoas como Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Estaline, Lenine, Trump, Perón, Mao e as suas sequelas, Kim Jong-un e demais família, Maduro, Putin e outras figuras que se foram levantando e instaurando ditaduras, ou simulacros de democracias mais ou menos ferozes por este mundo fora, era que, no caso particular das democracias, das legítimas, não se pode virar as costas ao inimigo e muito menos 'adormecer na forma'.
Já passaram mais de 80 anos desde o final da Segunda Guerra Mundial e 106 anos da Primeira dita Grande Guerra, a de 1914/18. E esperava-se, esperavam os povos que, depois disso, mesmo que o mundo não viesse a ser um lugar muito mais justo para se viver, que pelo menos fosse um lugar razoavelmente pacífico tendo em conta aquilo que se tinha visto em matéria de destruição material e de vidas humanas nas duas referidas guerras. Mas não, os sanguinários, os criminosos, os ditadores nunca dão a sua obra por terminada. Durante algum tempo apresentam-se aos povos com uma máscara de bondade, justiça e pacificação. Depois, quando todos estão entorpecidos pelos seus discursos inflamados, mostram a verdadeira face, como provam os tempos que vivemos na actualidade.
Globalizou-se o mundo dos negócios e das economias e eu sempre achei que isso era capaz de não ir dar bom resultado mais à frente. E não deu. A Europa, sempre meio 'naïf ', achou que era desta que iria viver em paz e segurança. Terminada a Segunda Guerra Mundial, com a ajuda do Plano Marshall gizado pelo General norte-americano de nome George Marshall, a Europa encontrou-se de novo com a normalidade de uma vida em paz relativa, com segurança e prosperidade possível, embora esta última não fosse um paradigma igualitário para todos os os países. Retalhada entre o Ocidente e Oriente, a fazer lembrar o Império Romano no seu ocaso, teve que conviver com o comunismo da URSS e os seus Gulag's durante mais de sete décadas até que Novembro de 1989 trouxe a alegria que os europeus queriam sentir: a queda do comunismo na Europa. E não tardou realmente muito até que a URSS se desagregasse e tombasse como um castelo de cartas. Mas a nossa alegria, a dos europeus que gostavam de ver uma Europa reunida sob a égide da democracia, não durou muito, e a expectativa dos Russos viverem finalmente em democracia durou ainda menos.
Putin, esse nome maldito que se ergueu e chegou num ápice à chefia dos poderes russos instalados nos grandes e dourados salões de São Petersburgo ou Moscovo, veio confrontar, de novo, a Europa com a guerra no seu território e, pior, com um possível alastramento que, em bom rigor, não poderá ser de todo descartado face à volatilidade do contexto em causa e dos muitos factores que o compõem.
Angela Merkel, no seu mais recente livro, "Liberdade", refere que, numa visita à Rússia e quando a caminho do aeroporto para tomar o avião para a Alemanha, acompanhada por Putin no carro deste, ele lhe apontava a paisagem que desfilava ao lado da estrada e as povoações que se avistavam, compostas de casas de madeira tipicamente russas, dizendo-lhe que "ali viviam pessoas com pouco dinheiro e que, por isso, podiam ser facilmente aliciadas"[...]. Que na Ucrânia, o governo norte-americano incentivou precisamente grupos de pessoas como aquelas [russas], a troco de dinheiro para que participassem na Revolução Laranja do Outono de 2004. Jamais permitirei que tal aconteça na Rússia".
Mais ou menos inferida, por este pequeno trecho do livro de Merkel, a mente doentia de Putin, podemos aquilatar da sua predisposição para despoletar uma guerra contra o Ocidente seja com que argumentação for. E, na verdade, a Ucrânia, para o ditador, foi apenas um pequeno pretexto para exibir a sua vontade de continuar a obra iniciada em 2014 na Crimeia. Era fácil, estava logo ali ao lado; mesmo a jeito de Putin mostrar ao Ocidente como e até onde poderia estender os seus tentáculos.
Nesta configuração de valores opostos, julgo que teremos que desenvolver a consciência de que Putin jamais irá deixar que americanos e europeus possam levar a Ucrânia a sair da sua alçada (da Rússia) e Trump não passará apenas de um 'Faits divers' para Putin ou, pior, de um breve aliado que ele utilizará para chegar mais depressa à conclusão dos seus desideratos político-territoriais. Não podemos adivinhar o futuro, só podemos assistir como ele vai sendo desenhado.
Talvez não seja descabido de todo deixar aqui um criativo e interessante adágio popular:
"Cesteiro que faz um cesto faz um cento, é só darem-lhe verga e tempo".

Jac. Lourenço. Janeiro, 2025

segunda-feira, 10 de junho de 2024

E Depois das Canções que nos Despertaram da Letargia ?




Não sei com que Portugal se parece o Portugal que temos hoje. Mas há uma coisa que eu sei: é que este Portugal que temos hoje não é o Portugal com que a esmagadora maioria dos portugueses sonhavam quando, como eu, vieram para a rua saudar os militares que faziam o 25 de Abril.
Era jovem, estava, como usa dizer-se, na "flor da idade". Não sabia quem eram Mário Soares ou Álvaro Cunhal e, de política, só conhecia o que não sabia. Mas sabia que muita gente ouvia, na rádio de ondas curtas, programas que eram contra o regime instalado no poder até 24 de Abril de 74. O meu avô José Lourenço escutava essas rádios que, de países longínquos, clamavam pelas suas verdades, que eram contra o regime. Mas isso a mim não me interessava para nada porque o que eu queria era brincar e ser feliz.
À medida que cresci fui sabendo coisas novas como a de ter um tio-avô preso e torturado em Caxias. Qual o seu pecado? Ter fome e, dentro do conhecimento que teria, ser contra um regime político que o impedia de levar, pelo menos, uma vida minimamente digna no Alentejo onde era apenas mais um trabalhador rural sem perspectivas de poder alimentar convenientemente os seus filhos e sustentar a família. Mas isso, claro, era apenas um caso no meio de uma multidão de outros tantos casos iguais num país desigual. Portugal, se excluirmos os grande ou médios centros urbanos onde a miséria se conseguia esconder melhor, era um país medíocre que não tratava com o respeito merecido os seus naturais, especialmente aqueles que não tinham tido a sorte de nascer no seio de uma família rica ou até remediada.
O que significou para mim esse Abril de há meio século atrás ? O que sinto mais veementemente dentro do peito quanto a isso ? Desilusão, grande desilusão por este Portugal adiado que somos hoje. Se melhorou muita coisa ? Claro que sim. Mas muitas dessas conquistas de Abril de 1974 sabem-nos a pouco menos que derrotas neste Abril de 2024.
Quando assistia da janela de um segundo andar, na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, o mar de bandeiras vermelhas era imenso. Não se via chão, só o vermelho das bandeiras a drapejar e as vozes uníssonas de quem as transportava pela avenida. Foi aí que senti, já depois de ter lido muitos livros, revistas e jornais sobre política, que Portugal balançava entre duas forças gigantes que o atraiam: uma ditadura comunista, comandada à distância por Moscovo, ou uma vida em liberdade e desenvolvimento à semelhança do que se lia, via e ouvia dos países desenvolvidos da Europa Ocidental onde milhares de emigrantes portugueses tinham conseguido, esforçadamente, contornar a vida triste que levavam em Portugal. A emigração, a partir de meados dos anos cinquenta, foi para muitos a única saída para uma existência diferente e mais desafogada, um futuro melhor.
Ainda bem que a onda vermelha de Moscovo não nos eclipsou e que a nossa identidade europeia vingou. Mas, chegados a 2024, mais de cinquenta anos depois de Abril, que país somos, que gente nos imaginamos, que povo nos sentimos e para onde vamos ?
Ouvimos, semana após semana, mês após mês, ano após ano, uma frase que, de tão batida, se gastou completamente: "queremos fazer parte do pelotão da frente" ! E passámos a nossa vida, neste meio século transcorrido, a ouvir esse lugar-comum. Entretanto outros, que vieram detrás, lá muito detrás, ultrapassaram Portugal a uma velocidade estonteante. O muito ou pouco que se conseguiu alcançar neste país que é o nosso, e que amamos, se exceptuarmos a Liberdade, está ameaçado ou a desmoronar-se. Educação, justiça, saúde, emprego, habitação e outros temas tão relevantes para a vida de uma nação que quer ter um futuro digno, têm vindo a esboroar-se lentamente sem que apareça alguém sério (sem ser apenas mais um homem providencial, que desses já tivemos que chegue) de entre aqueles que elegemos quando votamos para que nos governem e que cumpra, efectivamente, o Abril de 1974 porque ansiamos. É por isto que esperamos há cinquenta anos; e, cinquenta anos são quase uma vida !
Fui criança, adolescente, jovem, adulto e agora já avô de 4 netos, quase sempre dominado por este desiderato de viver num país europeu que o seja efectivamente, numa Europa que sempre foi um referencial para o mundo em quase todos os capítulos da civilização, especialmente a partir do Renascimento e nos períodos moderno e contemporâneo da História global.
Não, não estou a falar dos cravos que murcham. Falo sim de esperança, desta esperança que ainda me deixa expectante, mesmo que ameaçada por forças meio obscuras que se reerguem dos escombros de 24 de Abril de 1974 .


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A Libertação do Mal - Como se Chegou até aqui ? (parte 2)




      A História dos territórios e dos povos que na actualidade são identificados por Israel e Palestina é, como vimos, vasta e remonta a tempos perdidos  por entre os liames com que se foi tecendo a geografia humana naquela região. Não pretendo aqui revisitar essa História, mas convém talvez lembrar que a presença dos dois povos naquela região remonta a tempos que são descritos pelos primeiros livros da Bíblia. De Génesis ao livro de Zacarias, são inúmeras as referências à ocupação dos territórios quer pelos filisteus, quer pelos hebreus. Convém porém alertar os mais distraídos, em relação à História humana dos tempos pré clássicos e clássicos que os territórios que os telejornais das televisões nos fazem entrar todos os dias em casa, não pertenciam, como hoje  identificamos, apenas a dois povos. Na realidade territorial de que tanto falamos agora  e, para nos situarmos melhor, podemos ir à Bíblia, ou até, se quisermos, às «Antiguidades de Josefo» e constatamos que a pulverização de pequenas “cidades-estado” (não sendo este o melhor termo, servirá no entanto para percepcionar o que se pretende dizer) proliferavam, sendo que, à semelhança da Europa, cada pequeno Estado ou Reino não ocupava e dominava, muitas vezes, mais do que o território que ficava dentro das suas muralhas.

      Como referido no parágrafo anterior, podemos pegar numa Bíblia (embora a Bíblia não se limite a ser um livro de História, como bem sabemos) ou num qualquer livro de História antiga e ler acerca dos  povos e pequenos reinos que persistiam na região e onde coexistem hoje palestinianos e israelitas. Os primeiros ocupando Gaza e uma parte da Cisjordânia, e Israel no território definido pelas fronteiras traçadas à data da sua moderna independência em 1948, embora seja também potência ocupante e administrativa de uma parte da Cisjordânia. Nos textos bíblicos encontraremos escrito que, de um modo geral, em Gaza (embora não correspondendo exactamente aos actuais limites), por exemplo, existiam uma mão cheia de povos e reinos a que genericamente a Bíblia se refere por filisteus por terem tomado tal designação a partir da nomenclatura que foi atribuída pelos Romanos (o que é comummente aceite), embora o étimo possa, eventualmente, revelar também influência grega porventura na sequência do domínio grego na região - que é aliás anterior aos romanos.
      
      Quem conhece um pouco da História da Europa, por exemplo, sabe que até muito recentemente, cerca de um século e meio atrás, tanto a Itália como a Alemanha, (para dar um exemplo que eventualmente possa se mais conhecido de todos) não eram os países unificados que conhecemos na moderna geografia europeia mas sim territórios onde coabitavam pequenos Estados ou cidades-Estado. Na região do mundo em que nos focamos, haviam também algumas semelhanças com essa realidade.  

     No plano da dimensão territorial de que falamos, a do Médio Oriente, se lançarmos o olhar numa perspectiva literária e histórica, que é facilmente escrutinada por todos, através da Bíblia, constatamos, de facto, que eram muitos os pequenos reinos que ocupavam  grande parte do território, (embora entrecortados por alguns Impérios de génese local mais extensos e que foram surgindo ao longo da História, como por exemplo, e para citar apenas dois dos mais conhecidos, a Assíria e a Babilónia) sendo que, à semelhança da Europa, cada pequeno Estado não ocupava e dominava, muitas vezes, mais do que a linha de um horizonte  que o seu olhar alcançava e que se estendia aos campos que pretendiam tomar como seus mesmo que sem qualquer possibilidade prática de os conseguirem defender de ataques de exércitos inimigos que, em sucessivas vagas e razias saqueavam, destruíam sementeiras, matavam homens, mulheres e crianças para além de tomarem cativos para escravizar. Prática recorrente era também roubar rebanhos e arrasar e entulhar os poços de água, um bem que, como sabemos, é vital em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo, mas muito mais no Médio Oriente daquele tempo e mesmo ainda na actualidade.

      Dos muitos povos e pequenos reinos que persistiam nos territórios a que se alude, um deles eram os Filisteus, que se concentravam numa faixa designada por “Philístia” ou Filisteia, como quisermos. A “Philístia” ou Filisteia, refere-se à terra que cinco diferentes princípes filisteus habitavam, e que é descrita em Josué no Cap.13:3, compreendendo o de Gaza, o de Asdode, o de Asquelom, o de Gate e o de Ecrom. Familiarizámo-nos com alguns destes nomes que persistem em cidades israelitas actuais e que andam agora nas bocas do mundo.                                     

      Para complementar, e compreender um pouco melhor o período milenar que abordamos, convém referir previamente que o termo «fronteira», como o conhecemos na actualidade, não era algo que fosse reconhecido por quem quer que fosse por esse tempo.  As eventuais «fronteiras» eram mais do que frágeis, eram absolutamente voláteis e à mercê de quem quisesse conquistar território, povoado, na maior parte dos casos apenas por pastores e rebanhos. Os métodos bárbaros para essa conquista não conheciam limites e quase todos se enquadravam no termo que usamos hoje para definir uma guerra bárbara que ultrapasse tudo o que diga respeito aos princípios mais básicos que devem reger a humanidade, mesmo que seja em guerra.                                                                                                                                    Mas é  aqui que voltamos ao fio da História e de como ele nos conduz até à designação de «Palestina» que, por muito que se pretenda e o reivindiquem aqueles que tomam partido contra Israel no momento actual, não designa  um país, uma entidade política ou uma nação que tenham correspondência com um território, balizado por fronteiras definidas, como as denominamos no tempo presente. A designação «Palestina» aparece tardiamente, no plano da História antiga, já no tempo do domínio romano e deriva da transliteração do termo «Philístia» ou, se quisermos «Filisteia», como já vimos mais acima neste texto. Ou seja: um território (referimo-nos para já, apenas a Gaza) habitado por vários povos debaixo da designação de «filisteus», como o designa a Bíblia, por habitarem na Filisteia, e que, curiosamente, consta na Bíblia como a ser incluído na Canaã mais alargada que foi prometida por Deus a Abraão.

  

Jacinto Lourenço

Dezembro, 2023



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

A Libertação do Mal - parte 1

      



E de repente, como que despertando de um sono letárgico, a humanidade, em zonas críticas do globo, assiste a terríveis desenvolvimentos de confrontações que a levaram a experimentar destruição e morte em larga escala. A Rússia, retomando o fio condutor do pior que sempre teve dentro de si, invade e espezinha um país soberano vizinho, levando o caos a uma nação que tacteava ainda os novos caminhos que levam à democracia. Por seu turno, o grupo terrorista Hamas invade outro país soberano e desencadeia uma acção de larga escala assassinando, de um só golpe, cerca de 1500 cidadãos israelitas, entre homens, mulheres e crianças (algumas ainda bébés) tomando também como reféns mais de duas centenas de pessoas de várias nacionalidades mas onde a maioria é israelita.

Hoje, quando rabisco estas linhas, rompeu-se (ao que parece por iniciativa do Hamas, segundo a comunicação social) a trégua humanitária que permitiu que fossem, durante poucos dias, trocados reféns por prisioneiros palestinianos de prisões na Cisjordânea.
Em resumo: a Rússia, que nunca viveu realmente em democracia, depois de corroída por dentro e abatida com estrondo a terrível ditadura comunista, voltou ao seu velho estilo imperialista e expansionista revisitando a ambição czarista de erguer um novo império com o criminoso Putin à cabeça rodeado da seita de corruptos que constituem a sua entourage.
Focamo-nos nestes dois campos de explosão do mal no mundo e, se não podemos deixar de pensar nos actores que os alimentam, não devemos obliterar os que os toleram, seja por interesse directo, lateral ou colateral, e que na penumbra de gabinetes bafientos vão traçando planos para resultados que lhes sejam o mais favoráveis possível. Também eles, vendendo a alma ao diabo, engordam o número dos que escancaram as portas do inferno para a Libertação do mal que se abate sobre a humanidade.
Julgo não ser novidade para ninguém que existe uma tríade de actores primários e secundários que intervêm, por esta altura, na agressão que a Rússia move à Ucrânia. Desde logo a Rússia, claro. Depois os regimes maléficos da Bielorússia, do Irão e da Coreia do Norte (sendo a Bielorússia o grande facilitador da agressão e os dois últimos os municiadores de larga escala de armamento à Rússia), a que se juntam ainda, num apoio que podemos apelidar de (i)moral, quase todos os regimes comunistas que restam espalhados pelo globo e ainda os partidos comunistas existentes no mundo ocidental, quais Cavalos de Tróia dentro das democracias ocidentais. Não devemos também descartar, neste último grupo, dois outros "Cavalos de Tróia": a Turquia na NATO (embora sem um passado comunista ou mesmo de grande amizade pela velha Rússia comunista), e a Hungria na UE e na NATO. Todos estes actores, cada um à sua maneira, ou decidiram não renegar poder retirar alguns cínicos benefícios da guerra Rússia x Ucrânia, ou optaram por jamais virem a alijar a velha "mãe" Rússia soviética de dentro de si, mesmo que ela já tenha deitado para o seu caixote do lixo essa parte da sua história em troca de algo que não é pior nem melhor; simplesmente partilha, num plano diferente, a mesma raíz do mal do comunismo do período soviético.


Jac.Lourenço

Dezembro 2023

segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Tal de Annita...



Que me desculpem os indefectíveis fans de Festivais 'rockeiros' de verão (não é o meu caso), pelo que vou dizer a seguir, mas só ontem ouvi, um pouco e pela primeira vez, nuns breves minutos da sua actuação no Rock in Rio Lisboa passados num canal televisivo, aquela que é uma das atracções juvenis do momento, a brasileira Annita.
Na verdade, tirando o habitual espalhafato de palco, o ruído ensurdecedor das colunas e, como que querendo passar por coreografia, a exibição pouco púdica de pele por parte de voluptuosas dançarinas, a tal de Annita não apresenta rigorosamente mais nada, talvez porque não tem voz nem canções para tal. Para além de tudo isso, abunda, fora do palco, a venda e distribuição de álcool entre o público (e vá lá saber-se mais o quê), mas claro que disso a tal de Annita não tem culpa nenhuma.
Gritar umas asneirolas para o público ululante colhendo em retorno uns coros de gritaria de assentimento terá porventura a ver com tudo menos com música e, apesar de não ser um especial melómano, sei e ouço o que é boa música. A tal de Annita não passa para fora do palco alguma coisa que se pareça com isso, nem transmite a mais ténue sensação.
Daí até à conclusão de que os tais festivais 'rockeiros' de verão (com raríssimas e gratificantes excepções) nada mais representam do que simples e preocupante alienação de massas, vai apenas um pequeno passo. As características psicológicas e sociológicas estão lá todas. A tal de Annita é apenas uma das muitas peças da engrenagem desta máquina de alienação que nada mais é do que uma corruptela musical.


Jacinto Lourenço, Julho, 22

sexta-feira, 1 de julho de 2022

O Saco de Gatos



"Há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar."

Hoje, veio-me à cabeça esta frase que teria feito parte de uma carta enviada para Roma pelo então Pretor da Hispânia Ulterior, Servius Sulpicius Galba, onde se queixava dos Lusitanos e das dificuldades para os submeter e acomodar ao projecto civilizacional do Império e à Pax Romana.
Pelos vistos, em Portugal (normalmente identificado com a Lusitânia) pouco ou nada mudou em milénios. Costa e o seu governo são o melhor exemplo possível, como já foram outros anteriormente. É o que dá juntar muitos gatos no mesmo saco...
Entretanto, e só para lembrar de novo, já passaram 48 anos sobre Abril de '74 e 36 anos sobre muitos milhares de milhões de Fundos Europeus despejados em Portugal desde a adesão europeia. Apesar disso, continuam a não se conseguir vislumbrar soluções que dêem um rumo europeu ao país. Continuamos na mesma "cauda" que ocupámos à entrada na UE (CEE) em 1986.



Jacinto Lourenço, Julho, 2022

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Em Busca da Felicidade




   A Bíblia diz, no capítulo dois do livro de Eclesiastes, que "a sabedoria é mais excelente que a estultícia, quanto a luz é mais excelente que as trevas", diz também, no mesmo capítulo dois, que "ao homem que é bom diante dEle dá Deus sabedoria, conhecimento e alegria".

   Mas afinal que homem é bom perante Deus para que possa alcançar a sabedoria e o conhecimento diante dEle?  Entende-se como "bom", na leitura de Eclesiastes, não apenas aquele que alcança muito conhecimento, muito sucesso profissional, muita capacidade humana neste ou naquele sector da vida apenas porque estudou muito. Aliás, homens sábios e bons existiram, e existem em todas as culturas e geografias, em todos os tempos, e sem que para isso tenha sido necessário atingirem qualquer patamar de sucesso social ou económico.

   Um homem, ou uma mulher, "bons" e "sábios", são aqueles que se conhecem a si próprios, à sua natureza humana e espiritual, aos seus anseios e limites e têm, dos seus semelhantes, do mundo dos homens e das coisas, um conhecimento equivalente e proporcional ao que têm de si próprios sem que tenha sido necessário, porventura, aprender tudo isso numa qualquer universidade.

   Eclesiastes diz também que a alegria do homem está relacionada com a sabedoria e o conhecimento. Pode inferir-se que, para sermos felizes, temos que nos percepcionar em todas as dimensões. Ora, ao homem moderno, parece-nos, tem faltado olhar e perceber a sua dimensão e filiação divina; sem isso, por muito "bom" que se seja, nunca se estará completo, nem nunca se poderá percepcionar, por inteiro, o mundo dos homens e da realidade em que se inscrevem.

   Sem o espírito divino em nós nunca estaremos reconciliados com a autenticidade do projecto maior que nos envolve, nem estaremos irmanados neste destino comum que nos juntou aqui, à face da terra, homens de todas as cores, raças e culturas, todos diferentes e todos semelhantes.

   Sabedoria e felicidade serão então, de acordo com a Palavra de Deus, um dom ao alcance apenas dos que se compreendem, a si próprios, nesta globalidade, nesta dimensão física e espiritual. Só isso nos pode trazer a felicidade, porque só isso nos voltará a integrar dentro dos planos de Deus.


Jacinto Lourenço, Junho, 2022

quinta-feira, 9 de junho de 2022

PORTUGAL É UM ENORME ALQUEVA PARADO NO TEMPO E UMA SOCIEDADE BLOQUEADA





1926-1974 = 48 ANOS
1974-2022 = 48 ANOS

A conta é simples de fazer. Já completámos tanto tempo em regime dito democrático quanto o que passámos em ditadura: 48 anos!
Mas onde chegámos ao fim de 48 anos ?
Em ditadura não tínhamos Serviço Nacional de Saúde. Poucos anos depois de 25 de Abril de '74, passámos a ter um SNS que aos olhos de cá de dentro e de lá de fora parecia um dos melhores da Europa. Era o que nos diziam. O que lhe aconteceu à data que vivemos ? Praticamente destruído no seu funcionamento.
Antes de 25 de Abril de 1974 a Educação e a Escola destinavam-se só a alguns. O resto da população ou era analfabeta ou poucos tinham acesso a ir mais além do que a instrução primária. Depois de Abril de 1974 a Escola generalizou-se, o analfabetismo reduziu-se a valores pouco relevantes e a Educação tornou-se, ouvimos e lemos da boca de muitos responsáveis, uma paixão. Após Abril de 1974 chegámos a um ponto em que o analfabetismo funcional grassa em largas camadas da população, isto é: as pessoas que conseguem ler e escrever não são capazes de interpretar correctamente o que leram e menos ainda escrever composições mais elaboradas ou fazer cálculos aritméticos um pouco mais complexos. A escola tornou-se um terreno de devassa juvenil e um lugar mal frequentado onde impera a indisciplina de alunos e quantas vezes de agressões destes e dos seus pais aos professores que, por sua vez, estão cansados, alguns deprimidos e sem conseguirem obter satisfação ou retirar compensação do seu trabalho, como aliás acontece com a quase totalidade dos trabalhadores por conta de outrem. Uma larga percentagem trabalham décadas sem um vínculo laboral estável e sempre com uma "Espada de Damocles" sobre a cabeça, expectantes da sua colocação e dos resultados do concurso anual que, em muitos casos, lhes pretende atribuir horários tão escassos em número de horas semanais que, a serem aceites, os condenariam a uma quase indigência social a muitos quilómetros de casa. Os governos acham normal que muitos professores se encontrem a leccionar a centenas de quilómetros da sua casa e das suas famílias mesmo sendo pessoas como todas as outras que têm vida própria; marido, esposa, filhos para educar, famílias e lares para cuidar. Ou seja, são muitos anos seguidos a correr o risco de ver a família a desestruturar-se.

A propalada 'paixão pela educação' chegou a um beco sem saída e transformou-se num pesadelo, ou numa coisa qualquer que não se consegue mover por desarticulada que é.
O insucesso escolar, que todos querem esconder de todos, porque ninguém o enfrenta seriamente, corrói o futuro e não há PISA que lhe valha mesmo que nos queiram fazer crer que sim.
Claro que quem tem meios para tal foge a este insucesso matriculando os seus filhos em colégios privados e uma ou outra universidade de maior qualidade, se possível no estrangeiro, para ter a certeza de que estes sairão com uma boa formação ou aptos a conseguirem os melhores empregos ou, pelo menos, com melhores perspectivas profissionais.

O que mudou então de antes de Abril de 1974 para cá na Educação ? Se descontarmos a escolarização básica e o analfabetismo, nada ! Os pobres e os seus filhos, a classe média baixa, ou até uma grande parte da média, continuam a não conseguir usar o tal elevador social que se diz funcionar com a educação ou, se ele existe, só funciona para os mais favorecidos de vida; para os outros ainda que se carregue no botão ele não se move para cima, só para baixo. O país continua a marcar passo no seu desenvolvimento porque a sua população tem baixas qualificações académicas ou técnicas em todos ramos do saber. E não vale a pena virem com a questão da tal "geração de portugueses mais preparada de sempre" porque isso não passa de um sofisma. Os bons, os melhores, os portugueses realmente mais bem preparados de sempre foram empurrados ou levados a irem procurar a sua vida no estrangeiro. Por cá ficaram os resignados, ou os que já deixaram passar o momento de fugir a esta triste sina de ser português em Portugal, ou ainda os que não podem simplesmente sair por qualquer outra razão.
Com o 25 de Abril de 1974, a vida das classes média e média baixa, a geração dos nossos pais, passou a viver muito melhor que a dos nossos avós e, nós, durante uma ou duas décadas, vivemos muito melhor que os nossos pais. Estudámos mais, tivémos melhores empregos, comprámos casas, carros e outros bens que para as gerações anteriores eram inacessíveis. Mas o que sabemos é que os nossos jovens, filhos e netos, não vão ter uma vida melhor que a nossa. E se a tiverem é porque a ajuda dos pais se tornou essencial para isso. Ou seja, os jovens têm o seu caminho e futuro bloqueados em Portugal e já nem um curso superior lhes consegue resolver grandes problemas porque muitas licenciaturas só os habilitam a puderem, eventualmente, ser caixas de supermercado ou coisa parecida.

Os pobres ou gente que vive abaixo do limiar da pobreza cifram-se em milhões de pessoas e famílias, e já não falo daqueles que sobrevivem em empregos que só lhes pagam o ordenado mínimo em troca da exigência de esforço máximo. Já era assim antes de Abril de 1974 com a diferença de que não havia ordenado mínimo. À imensa pobreza do país, que nos envergonha, só algumas instituições caritativas conseguem levar algum consolo e ajuda para que as pessoas que estão nesta condição possam passar um pouco menos mal; mas isso é uma panaceia, não uma solução que só se conseguirá pela via da transformação estrutural do país. Não, não foi para ter isto que se fez o 25 de Abril de '74 !
A justiça transformou-se numa anedota de mau gosto e que, mesmo assim, não está ao alcance de todos, só dos que a podem pagar nem que seja para a postergar...
O turismo, imagine-se, o turismo, a par dos subsídios da UE, é a principal actividade e fonte de rendimento do país. Infelizmente está dependente de factores aleatórios que nem sempre se conjugam a seu favor e, como se isso não bastasse, ao fim de 48 anos Portugal apresenta alguns dos piores aeroportos do mundo nas classificações internacionais, ocupando mesmo o pódio da vergonha . Então mas alguém acha que um turista que chega a Lisboa, Porto ou Faro, e tem que suportar, durante várias horas, uma fila com centenas ou milhares de pessoas para que o seu passaporte seja controlado, vai ter vontade de cá voltar ou, no regresso ao seu país de origem, vai dizer maravilhas de Portugal ? Só se se estiver possuído por sentimentos masoquistas o fará.
As pescas acabaram ou resumem-se a uns poucos barcos que têm actividade em águas costeiras e que se dedicam ao carapau, cavala, sardinha, e umas quantas espécies piscícolas mais nobres a que poucos poderão chegar face ao seu preço nas bancas dos mercados.
A indústria é quase inexistente, se descontarmos meia dúzia de grandes empresas. A agricultura idem, depois de múltiplas experiências falhadas. Eternamente dependente de subsídios estatais, sem escala que a possa rentabilizar economicamente, a agricultura claudicou em favor da pecuária. Gado bovino, caprino ou ovino enche os campos cercados, os mesmos que antes de Abril de 74 estavam genericamente cultivados. O gado, pelo menos, garante alguma solvabilidade e tem comprador certo que vem do outro lado da fronteira. E não, não estou a defender o regime anterior, só estou a dizer que se destruiu uma coisa que, com todos os seus defeitos e problemas pareceu funcionar até ao fiasco e implosão da dita reforma agrária e suas sequelas. Tudo foi erodido sem apelo nem agravo.


Pelos vistos depois de Abril de 1974 nem copiar ou manter o que funcionava razoavelmente se conseguiu fazer. A agricultura é por isso um enorme cadáver económico em Portugal.
Há uns anos, em 1994, e muito antes de a barragem de Alqueva, que já vinha sendo projectada desde 1955 e começada a ser construída uns quantos anos mais tarde para ser de novo parada durante décadas, alguém escreveu no paredão semi-construído a frase "Construam-me, porra !". Claro que era só um desabafo de uns quantos, na altura jovens, alentejanos locais enfadados com o tempo que decorrera desde que se iniciara a obra e a pararam a meio, mas que no fundo dizia muito da inacção portuguesa. Contudo a frase lá ficou a servir de espelho para nossa vergonha colectiva. A barragem só viria a começar a ser cheia em 2002 e inaugurado o seu aproveitamento hidroeléctrico em 2004. Pensava-se que iria transformar, pelo menos, o Baixo Alentejo, numa zona irrigada e fértil. Mas não; o que vemos hoje são monoculturas intensivas de rentabilidade muito rápida e mais do que duvidoso interesse estratégico para os interesses locais ou nacionais. Maioritariamente posse de capitais espanhóis, destina-se o seu produto a exportação. Economicamente não me parece resultar daí grande benefício para o país; ficarão por cá alguns impostos e, na melhor das hipóteses, a criação de uns quantos postos de trabalho sazonais. Quando os espanhóis se cansarem de Alqueva, os terrenos que foram irrigados pela água da albufeira precisarão de muitos anos para poderem ser descontaminados dos resíduos de fertilizantes, herbicidas, fungicidas e de toda a sorte de químicos que lá ficarem depositados e que poderão levar à esterilidade da terra por muito tempo. À sua volta, à volta do Guadiana, ou onde a água de Alqueva não chega por falta de capacidade económica da agricultura nacional, continuam a pastar, em cercados, pachorrentos bois, cabras e ovelhas, até que do outro lado da fronteira cheguem os camiões que os vêm carregar para os entregar em matadouros de Espanha.
Pelo meio de todas estas desgraças e misérias portuguesas, podíamos ainda falar dos fundos europeus a que muitos, e especialmente os mais próximos do poder, chegaram, roubaram ou malbarataram sem vergonha nem pudor e com cobertura vá lá saber-se de quem... E agora está aí o PRR de que nunca mais se ouviu falar depois da campanha eleitoral em que se enchia a boca com tão grande oportunidade, diziam mesmo, a última para mudar o país...
Podíamos ainda falar dos bancos, mas isso, toda a gente sabe que são um sorvedouro de dinheiro dos contribuintes e funcionam como sacos azuis para pagar milhões aos cleptocratas que abundam nas suas direcções ou presidências. Dos transportes públicos que deviam e podiam prestar um bom serviço mas que na maior parte dos dias do mês estão parados por greve dos seus trabalhadores a reclamarem ser melhor pagos; e não direi que lhes não assiste razão. O problema é que as suas greves sucessivas e constantes atingem sempre, e só, outros milhares de trabalhadores que precisam de ir às suas vidas laborais e depois regressar a casa, ir buscar os filhos à escola fazer o jantar dar-lhes comer e, no fim de toda esta lida, dormirem meia dúzia de horas, tantas quanto as greves lhes permitirem. Estes milhares de trabalhadores não podem sequer reclamar porque não têm qualquer capacidade reivindicativa, a mesma capacidade em que se estribam e protegem os sindicatos atrás da segurança do emprego público, ou nas empresas estatais, institucionais ou quiçá de outras grandes empresas estratégicas para o funcionamento do país. É só aí que os sindicatos se sentem à vontade para fazer chegar a vontade de certos partidos e manipular e atirar trabalhadores contra outros trabalhadores.
Será que ainda poderei falar de mais duas ou três coisas sem que esgote a vossa paciência? Pois bem, lá vão : temos uma das maiores cargas de fiscalidade da Europa; pagamos dos mais altos preços de muitos bens essenciais, como a energia e os combustíveis - e já era assim antes da guerra na Ucrânia- para além de muitos bens alimentares, electrodomésticos tão essenciais como essenciais são uma máquina de lavar roupa, louça, frigorífico, etc. Poderia falar também no preço dos automóveis e tantas, mas tantas outras coisas. Não acreditam ? Então aproveitem as férias e deem um salto a uma qualquer cidade fronteiriça espanhola, por exemplo, e comparem o que vão vendo. Chega a ser doloroso e revoltante observar o que pagamos a mais, ganhando muito menos, deste lado da fronteira.
Sim, foi aqui que chegámos depois de 48 anos e quase nos apetecia desabafar, como os tais jovens alentejanos, numa parede qualquer, a frase: "Portugal: contruam-me porra !" Já que até agora só conseguiram destruir !

Jacinto Lourenço, Junho 2022

sábado, 18 de dezembro de 2021

ERA UMA VEZ NO FAROESTE PORTUGUÊS...

 

Não tenho qualquer tipo de competência técnica para discernir sobre a questão da justiça em Portugal. Mas tenho aquilo a que se chama senso comum, seja lá isso o que for, que me segreda à consciência sobre o que parece estar certo e o que possa estar eventualmente errado.

Vem isto a propósito da enorme exposição pública que foi dada, pelos meios de comunicação portugueses, à prisão de Rendeiro na África do Sul e à de Manuel Pinho em Lisboa. Veio igualmente ao nosso conhecimento, com justificado alarido neste caso, a forma de como alguns elementos da GNR andaram a tratar os emigrantes na região de Odemira, sabendo-se que, afinal, isso era uma prática reiterada e que até existiam agentes já julgados anteriormente por esse mesmo motivo, e condenados, mas que continuaram ao serviço, o que foi porventura por eles entendido como um voto de confiança da justiça para puderem continuar com as mesmas práticas de ofensas à integridade física e moral de emigrantes. As forças de segurança, por uma questão axiomática, é suposto serem integradas por pessoas com qualidades cívica, moral, ética e idoneidade bastante para tal, e não por pessoas réprobas que já foram julgadas e condenados por crimes.
Confesso que não nutro qualquer empatia especial em relação às duas figuras citadas, Rendeiro e Pinho, assim como também me sobram muitas dúvidas sobre a forma que reveste o poder discricionário que é exibido por muitos agentes da autoridade na sua relação com os cidadãos, e como esse poder é supervisionado em cada esquadra da PSP ou posto da GNR. E as minhas dúvidas assentam também numa ou outra experiência pessoal, que me foi tocando pontualmente, como certamente a outros tantos normais cidadãos como eu, com abordagens pouco edificantes levadas a cabo por agentes, em especial da GNR.
Mas incomoda-me (e indigna-me) ver que a justiça portuguesa se deixa embalar actualmente mais por um atitude de justicialismo tablóide e exibicionista do que pelo exercício de uma justiça produzida no âmbito estrito dos tribunais sem preocupações populistas para satisfazer a vox populi. Quando isso acontece, quando se quer uma justiça para, em primeiro lugar, calar o povo, dá nas trapalhadas justicialistas que têm vindo a público. Em qualquer país minimamente civilizado a justiça não será isto que temos visto. E para usar um termo muito em voga por estes dias, quando há “foguetório” à volta dos actos da justiça, então sabemos que ela não está a cumprir com as pessoas pendentes de quaisquer resolução, nem consigo própria nem com os portugueses em geral.
Foi também penoso ver um alto responsável da Judiciária, armado em qual Marshal do antigo faroeste americano, vir a todas as televisões proclamar a prisão de Rendeiro, como se isso resultasse exclusivamente de si próprio. Talvez nunca lhe tivessem explicado que as suas funções devem revestir discrição, reserva, sensatez e contenção verbal na comunicação dos factos ao invés da exuberância pessoal demonstrada, completamente inusitada, pedante, e até a roçar o disparate.
Em resumo: sedimenta-se mais no nosso espírito a ideia de que a falta de qualidade da democracia portuguesa já atingiu e deteriorou bastante o cerne da própria democracia representada esta pelas instituições em que mais devia repousar a nossa confiança enquanto cidadãos.


Jacinto Lourenço
18 de Dezembro de 2021

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Lavre: O Meu Pedaço de Alentejo


Construída no século XIII e reconstruída no século XVIII após ter sido devastada pelo terramoto de 1755, esta imagem da igreja católica e matriz de Lavre aviva-me memórias de criança nos idos de 60 do século passado. Recuo no tempo e revejo-me com idade de pouco mais de meia dúzia de anos, cá em baixo, num recinto térreo a olhar para a porta da igreja para ver quando sairiam os noivos e o seu séquito de convidados.
Emproados, os homens maduros ou rapazes tipo franganotes, nos seus melhores fatos domingueiros. As mulheres casadas e as raparigas casadouras vaidosas nos vestidos, saias e blusas. As vestimentas deixavam muitas vezes adivinhar o passar do tempo, mas nada que o desenxovalhar correctivo do ferro de passar aquecido a brasas não resolvesse. Aos homens assentava-lhes a roupa como no dia de tirar sortes, embora, caso raro, com os botões do casaco algo mais espichados. As mulheres e raparigas, vistosas, empoadas com 'mises' e 'permanentes' que, de tão invulgarmente usadas mais pareceriam um objecto estranho implantado em cabeças pouco dadas a luxos ocasionais. Mas aos olhos dos homens e dos franganotes que raramente as viam sem roupas de trabalho; manguitos, lenços a tapar a cara e chapéus pretos a cobrir a cabeça, mostravam-se como se fossem rainhas e princesas.
Os rostos e mãos, fossem de homens ou mulheres, no comum dos casos e na maioria dos casamentos, deixavam adivinhar, pela pele tisnada, o trabalho duro do campo debaixo de um sol inclemente que não os poupava desde que nascia até que se ocultava no horizonte. Mais do que um casamento, era a festa que importava e se ansiava, terminando sempre com um baile movido, noite adentro, pelo acordeão, com as raparigas casadouras e os franganotes a iludirem os olhares perscrutadores das mães e os homens a preferirem o prosaico embalo de uns bons copos de vinho ou uma bebida mais fina se a apanhassem. Aos homens, o que os interessava, em boa verdade, e o que os divertia e fazia exultar, era muito mais a observação do jogo femeeiro dos franganotes. Iam-se revendo na sua própria juventude desfiada de baile em baile ao som do mesmo acordeão, a roubar afagos e apertos que os deixavam a sonhar com outras ousadias.
A nossa visão de crianças, amontoadas a partir de cá de baixo, na base da escada, e fixada no seu topo, só queria encontrar, nas mãos dos padrinhos, o taleigo onde se transportavam todas as expectativas fugazes do momento.
As velhas, espertas, atrapalhavam a criançada como podiam e apanhavam as amêndoas que voavam fazendo com que lhes caíssem junto dos pés imóveis. Meninos e meninas, ávidos de doces, agatanhávamo-nos e empurrávamo-nos para, entre mãos cheias de terra e pó, encontrar algumas amêndoas que nos sobrevoavam e caíam no chão empoeirado. Rolávamos então numa quase luta onde de amigos passávamos a adversários de ocasião naquela batalha sem quartel pelo melhor quinhão.
Chegados a casa, amêndoas metidas num copo com água bem agitada para retirar o pó, e o gozo de sentir aquele pequeno rebolo de açúcar derreter-se na boca era prémio suficiente para a nossa ânsia e sofreguidão após sofridos momentos no enxurdo poeirento.
Mas nem sempre os padrinhos dos casamentos eram pródigos nas oferendas à gaiatagem. Quando isso acontecia, os fonas eram mimoseados com uma lenga lenga repetida à exaustão para ver se o enxovalho lhes servia de emenda : "casamento xoxo que o padrinho é mocho, casamento xoxo que o padrinho é mocho". (na frase citada, a palavra "mocho" tem no Alentejo uma conotação pejorativa e não se refere ao simpático Mocho, que é uma ave bem bonita).
Vezes sem conta subi aquelas escadas. A maior parte para brincar no Adro à volta da igreja; as outras para conseguir que o padre Flausino me assinasse o livrinho que provava ter assistido à missa dominical. Sem ele, não havia televisão no domingo à tarde. Ora, como é bom de imaginar, o "Super Rato" só dava ao domingo à tarde! Se não assistíssemos, seria uma perda irreparável. Uma tirania que só poderia ser previamente redimida pelo pagamento de cinco tostões para entrar na sala da televisão, mas que eu, regra geral, não possuía.
A designada "televisão do padre" era a única (pelo menos que eu saiba) particular que havia em Lavre. Alimentava-a um pequeno gerador eléctrico que ia queimando o combustível e espalhando a pestilência da queima pela sala. Além de mais um ou outro dia da semana, também era ligada aos sábados à noite numa emissão televisiva concorrida essencialmente por mulheres que carregavam consigo filhos ou netos para lhes lerem as legendas dos filmes. O serão passava-se assim, numa sala fria, à volta de uma braseira daquelas que faziam "cabras" nas pernas quando apertava o inverno. A tarefa que nos era destinada nessas noites transformava-se em tédio e dava lugar, algumas vezes, a reinterpretações e criatividade para as falas dos actores, sem destoar muito da acção para não dar nas vistas.

Existiam mais duas ou três televisões nos cafés da terra, mas aí os gaiatos não podiam entrar sem serem acompanhados por um adulto e, regra geral, apenas para ver o Bonanza ou, eventualmente, uma tourada em que actuasse o cavaleiro Luís Miguel da Veiga, que tinha raízes na vila, onde nasceu também Simão da Veiga. Nesses dias Lavre mudava-se para os cafés onde as pessoas se amontoavam extravasando para a rua. Ver um homem, figura cimeira do toureio a cavalo de então, ligado à Vila, dar cartas nas arenas portuguesas, era um orgulho para tanta gente simples a que uma vida de quase semi-escravatura de trabalho duro e rude no campo, de sol a sol, não permitia grandes alegrias ou divertimentos.
Em dia solarengo espraiamos a vista para sul, a partir do Adro da velha igreja matriz; o tapete da rústica paisagem alentejana quase vem morrer-nos aos pés. Corta-nos a respiração, ergue-se plena de um verde que o Outono trouxe salteado por manchas de sobreiros e azinheiras que sempre lá estiveram. Fazemos sobrevoar o olhar pelos muitos telhados novos, ocres, de um bairro de casas de paredes alvadias. Mesmo que não possamos ver, podemos adivinhá-las com gente dentro, pessoas que se têm quedado em Lavre ou que elegeram a vila para retiro de dias pachorrentos. Mais ao longe, do lado de lá da ribeira, os novos 'Montes' erguem-se e impõem-se à paisagem denunciadores de um certo novo-riquismo; gente de Lisboa e alguns famosos, dizem-me.
Apesar de tudo, a vila parece resistir e conviver bem com o passar das décadas. É certo que à vista dos visitantes ocasionais não se mostram habitantes nas ruas; porque não existem, simplesmente, ou porque estão demasiado velhos para sair à rua. O comércio é resumido. Resistem dois ou três estabelecimentos dos muitos que a vila possuía. Há um lar onde estarão alguns dos velhos que não encontramos na rua. Uma conquista de 1974 nestas terras do interior, mas que se ergueu através do impulso visionário do padre Flausino.
Das pessoas que conhecíamos em Lavre, na nossa infância, a maior parte delas saíram em busca de mais auspicioso futuro nas grandes cidades ou vilas mais desenvolvidas, senão mesmo no estrangeiro. Sobram maioritariamente as que só podemos visitar em memória no bem cuidado cemitério onde repousa também a de pessoas que amamos. Mas sim, a beleza de Lavre não foi adulterada. Mantêm-se intocada e esplendorosa, pelo menos aos nossos olhos de menino que gostam de a preservar assim.
Os telhados das casas novas que observamos a partir do Adro deixam antever que Lavre vai persistir na sua secular história iniciada muito tempo antes de D.Dinis lhe outorgar foral em 1304.
Na foto que tirámos dispensavam-se bem as duas árvores. Excrescências que encobrem o património edificado e o desfeiam. Mas esperamos que isso seja resolvido um dia.
Iremos decerto voltar ao nosso chão alentejano, mas até lá, havemos de regressar à escrita sobre a nossa relação com ele.
Sobre Lavre e a literatura que a aborda, que nos aflora a mente, e que nos desencanta pelas memórias que traiu sem pontos nem vírgulas, só sobra a convicção comum de que esta velha vila que me viu crescer menino e adolescente seguirá agarrada ao mesmo chão que pisámos até finais dos anos 60. Agarramo-nos, afinal, a esse consolo, o de nos sabermos pertença sua e que ele nunca deixará de fazer parte de nós.


Jacinto Lourenço
2021, Novembro, 16