quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O Dia em que me Armei de Pancada com o Filho do Cabo da Guarda




Lembro-me bem de ter andado à pancada com o filho do cabo 'Mauzão' (*), que era o cabo da guarda lá da terra quando eu era miúdo. Todos tinham medo de se meter com o filho do cabo da guarda, mais por medo da "casa escura", o lugar onde ia parar quem a GNR da vila achasse que não se portava bem, conceito ligado, aliás, mais ligado a leis não escritas do que a outra coisa qualquer. Não sei se alguém de minha casa teve que se ir explicar ao posto por eu ter batido no 'Mauzinho'(**), mas a verdade é que lhe arreei umas boas chapadas quando o apanhei por baixo. Embora, em abono da verdade, deva dizer que também levei.

Senti um prazer inaudito por ter dado ao filho do cabo "Mauzão" uns bons tabefes, lá isso senti. Nos meus escassos 10 anos de idade, foi porventura o meu maior momento de glória, rapazinho, que era, tímido e circunspecto, e de humilhação para ele, que exibia nos recreios a sua imunidade de filho do cabo da guarda. De entre a miudagem, quem se atreveria a dar uns murros no 'mauzinho', filho do todo poderoso cabo "Mauzão" naqueles idos de final da década de sessenta, quando a GNR estava ao serviço dos poderosos e importantes do Alentejo e os pobres e remediados eram sempre atirados para a mó de baixo ? Foi muita 'inconsciência'... Vem talvez daí a minha antipatia pela GNR, acrescida de achar, ainda hoje, que esta força militar nunca deixou de ter o mesmo tipo de comportamentos e instintos 'caçadores' que tinha nos anos sessenta, especialmente quando os vemos nas estradas, e que já lhe identificávamos então quando por exemplo se escondiam os agentes nas curvas da estrada à passagem dos trabalhadores rurais, no final do dia de trabalho e lhes saltavam à frente, multando-os por cometerem esse 'hediondo crime' de transportarem as namoradas ou esposas nos suportes das suas pasteleiras, ou até para revistarem alcofas e taleigos em busca de meia dúzia de bolotas apanhadas longe da vista de feitores ou manageiros. Neste capítulo, julgo que tem a força militar em causa, e particularmente os seus chefes, nos vários escalões hierárquicos até ao topo, um caminho para percorrer, mesmo se a herança é pesada e carregada de maus exemplos históricos, com séculos de idade, permeada, é certo,  também com bons exemplos.

Difícil é avistar hoje, por exemplo, um patrulhamento de proximidade nas aldeias, vilas ou cidades, sob jurisdição da força em causa, na protecção de pessoas e bens, embora o patrulhamento sob jurisdição da PSP não traga nada de muito diferente e, por vezes, ainda piora, como foi o caso na cidade onde resido. O patrulhamento de proximidade, sem descurar as restantes missões, para além do mais, devia ser a missão primordial das forças de segurança.  Mas por uma razão ou por outra o entendimento não é esse. Claro, que há sempre que salvaguardar os bons exemplos que vêm, por via de regra, da parte de muitos agentes com uma sólida sensibilidade pessoal e profissional plenamente conscientes do papel que lhes é cometido na sociedade e da pedagogia e elevação de valores que devem revestir esse papel. Mas sobre isso, falarei daqui por dois ou três dias.
Se eu me arrependo de ter dado uns tabefes no 'Mauzinho' ? Não, nada mesmo. Para além do mais, também levei, embora o saldo se tenha mostrado mais positivo para mim. Ainda hoje, ao fim de meio século, não sei onde arranjei ganas para me armar de pancadaria com o 'Mauzinho' , o filho do temido cabo da guarda 'Mauzão', mesmo a trinta ou quarenta metros da porta do posto, nas barbas do 'Mauzão'.  Tenho esta particular tendência de não conseguir resistir à provocação por muito tempo e o 'Mauzinho', naquele dia, meteu-se a jeito.





(*) Por questões de protecção de identidade não menciono o verdadeiro nome do cabo 'Mauzão'.
(**) Idem para o 'Mauzinho'




Jacinto Lourenço, Novembro 2018