Nasci e cresci quase sempre em Lisboa, se descontar cerca de
quatro anos passados no Alentejo que fizeram com que o sentir alentejano se me
tornasse indissociável do que sou hoje.
Sempre gostei da capital, dos seus bairros, das gentes que os
habitam, do seu pulsar de grande / pequena cidade com um misto de pormenores de ruralidade
que não podiam escapar a qualquer observador estivesse dentro ou viesse de
fora. Não foram muitos os anos que morei
em Lisboa, mas foram suficientes para perceber que Lisboa, para mim, era uma
cidade para ir, estar umas horas, visitar, e regressar de quando em vez. Valia
sempre a pena Ir à baixa às compras, ou
ver o último filme a passar no Condes, no Eden, no São Jorge, no Odeon, etc; era um programa aliciante. Subir pela Sé até ao miradouro de Santa Luzia ou
pela Calçada da Glória até São Pedro de Alcântara para ver os telhados que se
espraiam cidade acima, cidade abaixo, ou mirar a Senhora do Monte no Outeiro contrário, eram
motivos mais do que suficientes para nos lavar a vista e a alma. Sempre me
orgulhei da cidade onde nasci e que vi transformar-se, mesmo que nem sempre
tenha sido para melhor.
Depois, mais tarde, comecei a ir a Lisboa para percorrer os
alfarrabistas à procura de obras ‘descatalogadas’ pelas editoras e que só
naqueles templos do livro se podiam
encontrar. Mas também nesses périplos, atrás de livros, me deliciava com a paisagem citadina, visto
que muitos alfarrabistas se podiam encontrar nos bairros mais característicos
de Lisboa. Subir as Escadinhas do Duque ou descer a Calçada do Combro, por
exemplo, não era apenas exercício físico, eram percursos de fruição pura da
cidade nas suas zonas mais pitorescas e onde se congrega muita da sua
monumentalidade.
Mas as cidades mudam e mudam de forma mais ou menos
continuada. Afinal, como diz o povo, “parar é morrer”. Pese embora isso, nem toda a mudança tem sido
para melhor, em Lisboa. Hoje caminhar na
baixa é quase como estar num centro comercial asiático a céu aberto. Poucas
lojas tradicionais restam. As livrarias onde me habituei a entrar, quanto mais
não fosse do que para apenas folhear meia dúzia de livros e olhar as novidades
ou sentir o cheiro do papel de livro que, como bem sabemos, é um cheiro
diferente de todos os outros papéis.
Alfarrabistas
contam-se quase pelos dedos das mãos no núcleo da cidade onde se concentravam a
maioria deles. A marcha
inexorável do dinheiro e do lucro rápido têm condenado toda uma forma de vida
que devia manter o seu lugar em Lisboa, porque uma cidade, e a alma de uma
cidade, também se faz disso, das lojas
tradicionais, do comércio tradicional e de Livrarias e alfarrabistas. Dir-me-ão
que é o progresso. Pois sim, mas o progresso não se deve sobrepor à alma, ao
sentir fundamental das cidades, ao seu coração, à sua cultura, à sua
idiossincrasia. E Lisboa está a
perder-se um pouco todos os dias. E é pena, porque afinal cultura e tradição
não são incompatíveis com modernidade, bem pelo contrário, é isso que traz, em
grande medida, os turistas a visitar Lisboa. Era isso que poderia continuar a
fazer com que apetecesse, a estrangeiros e portugueses, desejar passar umas
horas ou dias em Lisboa e fruir a cidade.
Quando fechar a última loja tradicional ou o último café
centenário. Quando a última livraria encerrar portas. Quando todos os bairros
mais tradicionais estiverem despejados de moradores e transformados em alojamentos
locais ou hotéis de charme. Quando no São Carlos já não se ouvirem notas
musicais ou a voz dos sopranos em toda a sua beleza lírica e o Teatro de ópera
for apenas mais um centro comercial, ou mesmo quando o D. Maria II vier a
ser apenas mais um edifício de fachada com
um escritório em open space no seu interior. Quando em todas as ruas da cidade
se ouvir apenas o bulício surdo dos "Tuk Tuk", dos táxis e o rosnar das rodas dos troleys dos turistas a baterem na calçada
portuguesa, então aí sim, deixará de valer a pena revisitar uma Lisboa sem alma
que será igual a qualquer outra cidade ocidental daquelas pelas quais não valerá a pena derramar uma
lágrima de saudade. Assim se mata uma cidade.
Jacinto Lourenço - Nov. 2018